«A poesia não tem presente; ou é esperança ou saudade». Estas palavras de Camilo Castelo Branco, que também foi poeta embora mais conhecido como polemista irascível e novelista apaixonado, aplicam-se ao livro de poemas que hoje nos cabe apresentar. Margarida Gama de Oliveira sabe que todo o poema digno desse nome aspira a ser a grande ponte entre dois mundos separados pelo tempo, pela distância e pela morte.
O poema, tal como a oração, liga de novo o que a erosão da vida se encarregou de separar. O poeta é o sacerdote desta estranha liturgia celebrada numa folha branca de papel (qual altar) com uma caneta, qual hissope com lágrimas no lugar da água benta.
O ponto de partida deste livro é a relação entre a Natureza e a Cultura. O seu primeiro poema é um programa: Naquele vale / a casa onde nasci / A casa onde senti / que havia sol / mãe / um mar de pão / um pai / a dor / leite e amor / água e mel / e uma caneta preta para escrever a vida. O poema olhou à sua volta e descobriu uma paisagem povoada pela chuva e pelos frutos silvestres: Gosto da chuva / sentada / na cadeira da varanda / a conversar comigo (…) Gosto de violetas roxas / perdidas nas levadas (…)
Ao lado da paisagem vegetal o poema registou, na sua particular cartografia, o povoamento humano, os ofícios a desaparecer, como o do cesteiro ou do moleiro:
E aquela mó / para quem a eira / as velas / o moleiro / e o trigo magoado / eram mesmo / só passado.
«Terra de Mel» é um poema que junta de modo hábil a Natureza e a Cultura. O motivo repetido deste poema é a ligação entre o mel (produto da terra) e o coração (produtor de sentimentos). Partindo de uma aldeia na moldura da serra (o casario, as ruas, o rio) o poema alcança a memória da Bíblia (a terra do leite o do mel) sem esquecer o Novo Testamento quando refere a triste traição de Judas.
No poema se registam duas geografias; uma geral (Senti a Primavera desde a primeira hora) e outra particular: Na minha pele / sinto o calor da eira / e a pereira / em flor.
Mas também se revelam viagens dentro dos livros como no poema «Na sala sem lareira» – a autora viveu em África como professora e regressou a África nas páginas de um livro. Não por acaso essa ligação surge a seguir no poema «Amo-te África»:
Canto as tuas / mansidões / teus jorros / de sangue quente / continente de poeiras / cor de nuvens. / Que o teu viço de palmeira / aqueça o rosto frio da Europa.
No contraponto do registo mais rural surge um poema citadino:
Tomo o tom rosa das casas / e caminho as praias de sol de Oeiras. / E as minhas beiras / brandos beirais de andorinhas / trocam os casais / e as madressilvas / pelos areais do mar / em que os olhos / mergulham confundidos / a chorar.
Na lucidez de quem descobre os erros de ortografia do mundo o poema invoca os poetas do passado numa espécie de memória justificativa do seu artesanato invisível:
Sem Catulo, sem Horácio, sem Camões / Só tu Cesário me vais acalentar / Naquele teu jeito caloroso de Verões / E em cidades, em ruas, em lugares / Eu vou de encontro a outros corações / Perfumo-me de cores e sei cantar.
Nunca se fechando no «eu» embora recorra ao «eu» como ponto de partida (mulher vivida, sofrida já de tanto amar) o poema procura sempre o «nós», o olhar colectivo como em «O meu país»: Capaz, capaz disso tudo és tu / que fazes do horizonte o teu sacrário / das tuas mãos em concha o teu baú / e até chamas destino ao teu calvário.
Só assim se justifica a revelação pública de um trabalho pessoal. Neste livro revejo a feliz definição de Maria Eulália de Macedo sobre o trabalho poético: «A poesia é estar atento e aberto ao que somos e nos ultrapassa. É uma espécie de fugidio sacramento, a exigente voz das coisas que são verdade – para além da verdade das coisas».
In Aspirina B
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