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segunda-feira, 25 de julho de 2011

Economia e religião nas culturas letradas: o pecado como conceito da reprodução social

1. O Problema

          Todos os povos idealizam as formas segundo as quais os bens serão produzidos, distribuídos e consumidos. Se esta actividade está ou não dividida em estruturas e instâncias, e qual delas assume precedência por sobre as restantes, é um problema do investigador, cuja técnica de conhecimento contém os limites do seu saber. Pode-se dizer que, para as pessoas que trabalham, o conhecimento daquilo
MOSTEIRO ALCOBAÇA
que fazem, como, quando, quanto e com quem passa por avaliações e decisões que dependem também do seu próprio entendimento do mundo. Assim sendo, penso que existe apenas uma forma de abordar este processo, definindo os conceitos que usamos para escutá-lo: se é certo que todos os povos produzem, não é menos certo que todos sabem como o fazer. É neste conjunto que temos de introduzir a dimensão temporal para entender como se combinam as ideias e as actividades. Ao longo do tempo, o conceito de economia tem variado desde o conjunto doméstico que trabalha, dividindo as actividades segundo as formas de classificar pessoas dos gregos clássicos, até à teoria independente que se pronuncia sobre as qualidades das coisas, teorizando e estudando a sua acumulação, cujo controlo passa a classificar as pessoas.
         Ao longo dos séculos, as formas de combinar coisas, pessoas, ideias e tecnologias têm sido definidas  pela  participação de  uma vontade  divina arbitrária na criação da sociedade, incarnada aos seus ministros e em preceitos.
Pode dizer-se, que a vontade divina, sendo criação do homem, já que só tem existência na medida em que é usada no cálculo reprodutivo, incarnando-se nele, ou melhor, materializando-se nele, é o conceito à volta do qual os povos constróem a explicação de si próprios e aferem as relações entre os membros individuais. Esta é a forma chamada religiosa de entender as relações sociais, definindo o trabalho de forma directa e precisa, que se pronuncia sobre as modalidades de pagamento de preços e salários. Não se pode dizer que a economia tenha permanecido dentro da religião, porque a religião é outra forma de pensar o valor das coisas; é, contudo, a forma que serve de base imediata à criação da economia como modo de teorizar que calcula pela utilidade marginal que os homens podem criar quando têm bens acumulados com vista ao lucro. A divisão taxativa entre ambas as formas de teorizar-se deve-se, por um lado, à divisão entre ciência e teologia com que os intelectuais entendem o mundo, enquanto que, por outro, se deve à ignorância que a cultura letrada, enquanto forma dominante de pensar a partir da causalidade, atribui aos que não sabem economia. Estes, usam o saber subordinado da religião.
 2. A religião
          Existem mil e uma formas de definir este conceito, e outras tantas formas haverá também de entendê-lo e pronunciar-se acerca dele. Entendo por religião o conjunto de abstracções em ideias, rituais e entidades espirituais que os homens elaboram a partir da sua experiência histórica: a teorização do acontecer histórico.
         No meu pensamento está presente o facto de que, enquanto seres humanos, pronunciamo-nos acerca dos nossos factos e definimo-los porque é essa a forma de os entendermos, colocando os limites. Acabamos por definir da mesma forma, aquilo que serve como o que não serve: sistematizamos os abusos do corpo e sistematizamos as virtudes da alma. A alma passa a ser assim, uma síntese do que as pessoas devem fazer, é a memória individual no meio do colectivo. O homem da mulher Kiriwina (Malinowski, 1948) quando produz inhames para o irmão dela, exibe a colheita e leva-a em procissão a sua casa; quando morre, o inhame maior ser-lhe-á oferecido para, na ilha Tuma ou ilha dos mortos, apresentar ao guardião, que assim ponderará o seu valor enquanto homem que vale a pena repetir através da encarnação. As formas de compreensão dos Maori  (Firth, 1929) passam por ponderar os valores que cada pessoa deve ter na sua condição. O mito do Bagré dos Lo Dabaga (Goody, 1970) serve para desenvolver as qualidades da observação e da memória. As pessoas no Ocidente têm de exibir virtudes, que estão repartidas entre os atributos da divindade, e o culto dos mortos específicos passaram a ser santos. Enquanto treino, a religião cumpre a função social de dividir cada membro individual pelo conjunto de qualidades que, previamente, compõem o modelo central – a divindade. As qualidades da mente que abstraem passam por entender a diligência, a lealdade, o amor, a compaixão, a caridade, a fé e outras virtudes que, se têm, estão atribuídas em conjunto com a sua versão negativa. Parte da abstracção feita pela mente que constrói as relações sociais são as ideias de mal e de dor. Mesmo a explicação da criação do homem é um mito do Génesis que explica, com todo o detalhe, como se chegou a saber: em companhia de outros seres humanos, da própria natureza que é a serpente, a árvore e o jardim, e prescindindo da divindade e das suas normas. O castigo da expulsão, antecipa as fadigas pelas quais passará o corpo e define com antecedência as doenças ou disfunções que terá na medida em que transforma a matéria em bens. De forma sistemática, a concepção que o homem tem da sua própria história é abstraída em formas explicativas de como entender o real: pessoalmente, experimentando, sem recurso a outras forças para além da sua, ao mesmo tempo que vai entregando os elementos do trabalho em representações que permitem lembrar nas culturas sem escrita. A palavra divindade não é suficiente, existem as representações que se vêem, assim como mais tarde se lêem. Com técnicas diversas, o homem abstrai a sua acção e recorda.

 3. O pecado

          Se o trabalho é a colaboração de seres humanos, natureza e saber experiencial dos primeiros sobre a segunda, quer dizer, o abandono da ideia de divindade ou a sistematização da matéria, que é o pecado senão uma taxinomia e uma garantia?
Influenciados como estamos pela nossa própria forma de pensar, poderemos entender os seres humanos que, pela crença, definem as formas incorpóreas e abstractas de lembrar as definições das relações sociais, dizendo que se trata de um culto de espíritos, que é como designamos tudo o que fica fora da História. Contudo, se nos recordarmos do valor que o trabalho tem entre os seres humanos que se vêem e sabem parte da Natureza, apercebemo-nos da necessidade que a ideia de pecado envolve, de distinguir para entender, na relação homem Natureza.
         A primeira parte da taxinomia consiste em manter os indivíduos submetidos ao grupo: o próprio conceito de pecado deriva do amor, isto é, a caridade entre os homens e para consigo próprios, expresso no amor da divindade. Quem rompe a lealdade com o grupo, fica exposto da forma como ficou Caim, Salomão, Jesus, Judas, Pedro, Thomas Becket, entre outros. No entanto, existe uma forma de romper por traição, e, a forma de romper porque o grupo se torna pouco razoável; ainda que nos dois casos se sofra, só a traição é castigada porque mata o entendimento entre todos, hierarquizado como é. Uma segunda parte, é o cuidado com as virtudes que a partir da divindade os homens enumeram, numa projecção das suas próprias potencialidades com as quais a revestem: justiça, paz, bondade, omnipotência, contidas no homem. Uma terceira parte da taxinomia, é a submissão à hierarquia do grupo que trabalha, onde há uma correlação entre dar a vida, ter recursos, saber administrá-los e aceitar a subordinação aos que sabem e entregaram o conhecimento e os bens que asseguram a continuidade social. Uma quarta parte da taxinomia, diz respeito à compreensão dos corpos, o seu cuidado e o seu objectivo, onde se define o entendimento da sua gestão, não só para mantê-los vivos, bem como para não desgastá-los. Ao mesmo tempo, uma quinta parte classifica os bens com que os corpos trabalham e os retira aos que não possuem entendimento ou legitimidade. Uma sexta parte refere-se à reputação das pessoas que circulam entre as coisas, já que sabem transformá-las, o que lhes confere um bom nome, quer dizer, um destino entre os homens, um lugar garantido na estrutura enquanto mantenham o seu saber, a fama que vem de preservar o contexto que guarda esse saber e as condições em que o corpo pode materializá-lo. Finalmente, a sétima parte da taxinomia é a sistematização das relações entre os homens, os seus grupos e as suas coisas, de forma que ninguém subtraia a outro o que facilita e permite a sua reprodução.
         A garantia de tudo isto está na criação das transgressões que durante muito tempo foram castigadas em nome da divindade cá na terra, enquanto que no Céu se viria a fazer como Deus entendesse. A história recente do Ocidente, com o seu antecedente de abstrair os seres humanos segundo uma concepção do trabalho que se entende primeiro e se faz depois – alma e corpo – mostra as consequências da transgressão.

4. Economia

          Parece-me que tais consequências se encontram na economia, como domínio independente, ou talvez tornado independente, da religião. O pensamento do Ocidente começa a preocupar-se com as coisas quando cria uma outra força para o trabalho que segue estritamente as regras da invenção humana, aplicada agora de forma não subjugada ao movimento natural. A luta mais esclarecedora é a discussão entre os fisiocratas e a burguesia no seu interlúdio revolucionário de 1791. Talvez seja tão importante como a da sistematização de elementos que se encontravam dispersos e que permitem a Ricardo formular a lei que orienta a criação do valor, enquanto Marx os usa para explicar a História. Assim, temos as várias lutas.
         A economia passa a ser a teoria do trabalho quando as bens adquirem movimento próprio escapando das mãos dos homens como mercadorias, e o conhecimento se especializa em qualificar a força de trabalho. A teoria que sistematiza a acumulação vem já do entendimento de que, obter o trabalho dos outros, quer dizer, não tratá-los como iguais, decorre da caridade não cumprida. A própria acumulação é um entesouramento onde apenas se armazena o coração e os sentidos, se isso a torna possível. Entende-se que o corpo sem cuidados e sem comida, sem recursos, acaba por não estar em condições de trabalhar e, usando o artifício de transpor o respeito pelas coisas, pessoas e prestígios de outros para alguns por meio da lei civil, inverte-se a realidade que sistematiza o religioso, acabando por fazer desta forma uma figura verdadeiramente de espelho. A economia valoriza o trabalho do homem a partir dos mesmos factos pragmáticos com que a religião os estuda e classifica: é da ética que vem o primeiro princípio da criação da riqueza, o trabalho; enquanto que o segundo, o valor, pode dizer-se que vem da apreciação da diligência, honestidade e cumprimento dos valores domésticos e familiares. O terceiro resultado, a riqueza, acumulada ou lucro da bondade , que é o conceito que subsume  o saber usar os bens para os objectivos para os quais servem. É aqui que a economia consegue a separação dos homens que entendem o trabalho pela dor, a riqueza pelo milagre, a acumulação pelo respeito ao próprio corpo e ao dos outros. Cria um conhecimento do movimento dos recursos, da sua produção, circulação e consumo que escapa a quem não possui o entendimento dos princípios com que se avalia o cálculo do que produzir, ao mesmo tempo que se gera uma separação entre esse conhecimento e as pessoas, através do emprego de técnicas para recordar princípios que não são apenas escritos, mas obedecem a formas de registar por escrito depois de aplicar uma bateria de outros conhecimentos, seja no movimento da produção industrial que obriga a desenvolver a teoria económica, seja nas próprias regras e abstracções com que o saber económico é produzido. Conteúdo e forma colocam o saber reprodutivo longe dos não especialistas, tomando vantagem o proprietário que lucra através das formas de entender os seres humanos pela sistematização funcional que o pecado ensina. A economia funciona com a teoria do mal.

 5. O mal

          É uma acumulação letrada através do tempo. Assim como o bem está reflectido na divindade que é infinita, e é duradouro enquanto virtude, o mal é conjuntural. O problema que o ser humano tem, por onde é atingido pelos outros ao descuidar-se, é a sua própria fragilidade no meio da matéria. Não há só que comer, beber, vestir-se; há que saber como se faz, pô-lo em execução e mostrar que se persiste e triunfa. A resistência à virtude, é a melhor ideia que encontro para definir o mal. Ao conjunto há ainda a acrescentar a afectividade e o desejo que fazem parte do corpo que o homem veste. Estes elementos individualmente distribuídos por todos os membros de um grupo social, e por igual, colocam-nos em guarda uns frente aos outros porque cada indivíduo que sente a necessidade é com outro que vai resolvê-la. Não se pode entender esta fragilidade no vazio, pois não existe assim; nem pela categoria histórica, já que é demasiado geral. A fragilidade reside nos indivíduos que vivem relações de aliança formal, mas que funcionam pela capacidade ou incapacidade de transformar uma ou outra parte da Natureza. Não é  a reciprocidade que permeia as relações humanas numa teoria sobre a dádiva: é a competência que distribui desigualmente capacidades entre indivíduos que vivem em grupos. O que relaciona cada um destes elementos com os de fora do seu grupo de pertença, é a sua própria capacidade de produzir o óptimo: bem, rapidamente, e para suprir as necessidades de muitos.
         A sabedoria assim avaliada, é controlada diversamente através do tempo, da mesma forma que se entende que o grupo do Génesis, ao ignorar Deus, peca. A capacidade é um elemento de hostilidade quando não possui, vem de Deus quando a pessoa que a distribui entre todos o faz sem vantagens materiais, ou do Diabo quando se aprende o que dá vantagem. O mal é saber para vantagem própria, controlando com o saber os recursos que defendem o homem da sua fragilidade. Preguiça: afasta do trabalho; luxúria: não permite controlar a fertilidade; avareza: retira bens da circulação; usura: acumula-os em poucas mãos. É por isso que são castigados. Como também o é a experimentação fora da teologia, ou seja, a aprendizagem das as técnicas de conhecimento que estão definidas fora do grupo em que a pessoa está. A capacidade não explicada para poder trabalhar optimizando, assim como a capacidade não submetida à hierarquia e poder que não acumula para glória da divindade, são bases do mal.
         Desde o desenvolvimento da teoria do contrato, a suposta igualdade resolveu a situação parcialmente, mas colocou-as de forma ininteligível por meio de regras da cultura letrada, temática que constitui um outro capítulo deste livro. A capacidade do homem para produzir valor económico que se troca, pode entender-se na medida em que a sua habilidade é teorizada em proibições frente à sua fragilidade. Pelo que, o que o conceito de pecado faz, é sistematizar a natureza e capacidade dos seres humanos na construção das suas relações.

 6. O valor

          Será ao económico, não ao ético que me refiro aqui. Não me parece ser possível separar as duas formas de o conceptualizar: o trabalho é de quem o faz. Na economia, o trabalho é conceptualizado e entendido como a aplicação do esforço humano à transformação da natureza e esta actividade cria, de acordo com o tempo que demora, a desigualdade entre as coisas que permite, avaliando-as, equiparando-as e  trocando-as. Há quem diga que é a escassez do bem produzido que cria o seu valor; há quem diga que a riqueza resulta da utilidade marginal. Contudo, o valor é, em todas as hipóteses, a avaliação de um bem que resulta do trabalho humano, com ou sem utilidade marginal. Estas ideias sistematizam a criação de bens e a subordinação do Homem aos mesmos, mas mantêm o conceito básico de actividade humana dirigida para a transformação da matéria: o que se procura é domesticação da matéria, seja pela vida da ciência para quem entende o raciocínio letrado, seja através do raciocínio que deriva a experiência acumulada em várias divindades que se pronunciam sobre a heterogeneidade do mundo, unificando actividades diversas em prol da fabricação de um objecto, ou da organização de uma tarefa.
         A ideia básica do trabalho foi concedida no Ocidente como uma condição para o homem viver num estado natural de economia natural e é esse conceito que define a criação do valor. Os textos que definem a economia natural, ou relações sociais sistematizadas a partir da subordinação da matéria à habilidade humana organizada em família e grupo de parentes, estão baseados nas ideias definidas teologicamente através do tempo e acumuladas em escritos. Estes textos acabam por configurar as relações de uma forma definitiva, contextualizando o trabalho. O primeiro tópico que a ética aborda, é o do engenho de cada um, enquanto virtude, acompanhado pela habilidade e pela a fidelidade ao que se sabe fazer e a obediência para com quem manda fazer. O segundo, explicita que o trabalho é digno, ou seja, a pessoa é socialmente aceite, cultivada e respeitada desde que domine uma forma de subordinar a natureza, sendo assim uma parte da memória do grupo. Simultaneamente, a actividade produz uma igualdade entre os himens que a praticam: todos os seres humanos estão sujeitos à necessidade de produzir uma parte da vida e esta produção, que acaba por ser desigual porque são muitas as tarefas, gera o conceito de justiça ou conjunto de regras que resguardam a igualdade entre as pessoas, apesar da diferente aplicação do seu esforço. Em terceiro lugar, esta justiça encontra-se na medida em que a Natureza está partilhada através de um sistema privado de possuí-la, pagando-se a quem não possui um salário que seja conveniente para a actividade realizada conforme a condição daquele que produz, do que produz, e para quem o faz. Em quarto lugar, os bens produzidos neste sistema, em virtude do trabalho e da propriedade, podem-se trocar, mas não devem negociar já que esta actividade fica fora do foro da economia natural, sem criação de valor pelo esforço humano, mas sim por moeda, que não ajuda à salvação. Porque, felicidade, satisfação ou salvação, são o objectivo de criar valor, tentando o homem criar um estado que o projecta para além da sua fragilidade para normativizar a sua capacidade.

 7. A prova

         A sociedade que cria produtores não cria sábios. A sabedoria é a sistematização, o cultivo da teoria que organiza as actividades entre os homens, a abstracção das características do real em ideias que o ampliam e desenvolvem o conhecimento. Passar da actividade à teoria, é retirar pessoas da produção. O que uma sociedade cuida; especialmente nos sistemas que centralizam a produção acumulando-a em lucro via valor marginal, tudo o que os produtores deixam de receber pela sua actividade; é a manutenção de um stock de pessoas que derivem o seu saber da prática directa com as coisas. O homem que fica sujeito ao grupo e à lei. A dimensão da sujeição básica, que cria a virtude do engenho no trabalho, é a de colocar as habilidades ao serviço do grupo: é por isso que, apesar da divisão da sociedade do salário em tantos indivíduos como capacidades particulares existem, a avaliação do trabalho ainda se apresenta como um serviço à nação. Trabalhar dignifica a pessoa e engrandece o país, sendo esta a ideia que se transmite ao cidadão que se fabrica textualmente nas escolas. A dimensão básica que serve para sistematizar tudo aquilo que, depois disso, é pecado, encontra-se no texto básico da gesta histórica ocidental, o evangelho. Nesta dimensão, existem três ideias: uma, é a de que ou se está unido aos outros ou se anda perdido, a menos que o coração esteja unido, todo o corpo fraquejará. A segunda é que, apesar da união com os outros, a sua igualdade e competência colocarão pedras no caminho que fazem tropeçar: quer dizer, se está bem com o grupo com que se trabalha, outros há que querem enganar e fazer mal. Aqui, ficamos advertidos acerca da condição humana que o evangelho explica claramente e que a teoria económica de hoje chama concorrência, ajuste entre a oferta e a procura. Uma terceira ideia que o evangelho veicula é a de que o Ocidente sistematizou a sua construção da História e põe na voz de Jesus, é a de que a vontade nem sempre é livre, explicando esta ausência de liberdade pela metáfora do demónio. O conjunto de identidades com que o imaginário ocidental governa a sua conduta, passa pela criação de conceitos que explicam a sujeição ao não bem porque há outra vontade que subjuga. Se digo ao não bem, é para enfatizar a ideia de que o homem, feito à imagem da divindade, que é como a si mesmo se concebe, não quer o mal. Se o consegue pessoalmente, é porque há agentes externos que o promovem. As relações sociais, então, contêm ideias que, por meio do cultivo do conceito de alma e de salvação, procuram entender o que é uma vontade livre que permita manter cada membro do grupo dentro das suas capacidades médias na construção da sua história. Porém, esta construção é guiada pela ideia que a Igreja desenvolve. A Igreja serviu de veículo de manutenção da ideia religiosa com via do saber, separando a inteligência da experimentação e submetendo a explicação dos fenómenos à crença no mal que só se afasta do homem pelo seu engenho. A virtude do trabalho  resguarda do pecado.

 8. A cultura letrada

          A experiência humana pode-se cristalizar em escritos que são devolvidos ao povo pelas explicações dos especialistas. Embora a sociedade que cria produtores não crie sábios, não deixa abandonado o grosso das pessoas. A teoria é entregue de forma sistemática através do tempo, em conceitos que decompõem o real e colocam a dúvida permanente na dimensão básica das relações sociais: há que amar e viver para os outros, mas os outros pode fazer-nos mal. O que se verifica porque em cada indivíduo há a possibilidade de enganar. A teoria  que se explica por meio de Jesus diz que o pecado é a falta de bondade, as paixões que deixam arrastar para a ira e para a luxúria e o desejo impuro. Esta ideia vem de um povo que é formal e ortodoxo na forma de entender a vida: criar. O objectivo da vida é criar, como ensina a própria metáfora da divindade. Desenvolvimento histórico da ideia de pecado expressa-o: o pensamento que se desenvolve fora do real, infrutífero, sendo o real a ordem que se construiu, e a indecisão moral face ao dever, colocam a pessoa dividida. Os intelectuais observaram o comportamento e explicam-no por fórmulas que procuram aliviar a dor ou as consequências improdutivas da condição humana em prol da não esterilidade histórica do grupo. Não é a revelação que entrega esses dados, é a observação. S. Paulo observa que o desejo interferir com a lei que ordena a acção e o pensamento; S. João define o isolamento do indivíduo com a incapacidade do homem para possuir-se, aceitar-se a si mesmo e estar com e no meio dos outros, sendo o orgulho e a sensualidade duas condições que interferem no pensamento. A Patrística do século II até à Idade Média, observa os seres humanos a afastarem-se das ideias judaico-cristãs de unidade, por meio de condutas que define como fornicação, idolatria, assassinato, falta de vontade para aderir à vontade da divindade que se expressa na ordem natural  com que se explica a realidade, como explica Agostinho de Hipona: a teoria não causal da relação entre as coisas, pessoas, ideias e tecnologia. O crescimento acumulado pela palavra escrita – o verbo feito cátedra – , leva, na Idade Média, a definir que o pecado é amar os homens e não a Deus, onde a concupiscência é o conceito central. A reforma, a contra-reforma e o pensamento actual da teoria, colocam o pecado num só plano: a luta entre razão e paixão, onde o pecado é o facto social pelo qual o trabalho de todos não reverte em favor de cada um, mas sim de quem toma vantagem no entendimento da reprodução. Eu diria, na senda de Kant (1793), que o problema se coloca pelo facto de cada homem estar dotado da razão; e acrescentaria que numa cultura onde se produz em grupo mas se aprende individualmente, cultiva-se a separação de uns e de outros por meio de pensar a igualdade e desenvolver o contrato, onde o conceito de pecado acaba por transferir-se para uma forma de regular a produção ao actuar na consciência. E é assim que a lei positiva o entende agora, a Igreja o transpõe e a teoria económica o usa. O conceito de pecado é, pois, a explicação das possibilidades de um real contraditório composto por indivíduos dotados de razão que produzem e reproduzem socialmente: onde a opção individual se doseia com a solidariedade. O pecado sistematiza os elementos da realidade que dinamizam o processo de reprodução da sociedade.

 9. A reprodução social

          O pecado sistematiza os elementos do real que dinamizam o processo de reprodução da sociedade. Estes elementos são os recursos que classificamos em pessoas, coisas, ideias e que estão contidos num conhecimento herdado que gosto de chamar tecnologia. A relação entre todos estes recursos, a matéria que tem de ser trabalhada, os homens que a trabalham, as ideias que teorizam como trabalhá-la e que resultam de lidar com ela, formam a teoria onde o conceito de pecado sistematiza e classifica a conduta social. Porém, existe uma capacidade teórica mais ampla no conceito, que creio que deve ser explorada: a capacidade de permanentemente reclassificar as pessoas. De facto, a economia ao longo do tempo foi abstraindo as qualidades das actividades que as pessoas desempenham, convertendo-as em ofícios. O lugar que uma pessoa ocupa na estrutura social tem a haver com a apreciação do ofício que desempenha por relação à forma reprodutiva mais importante do seu tempo; as qualidades com que desempenha o seu ofício ou o trabalho parte do valor do conhecimento e capacidade que se pode exigir da pessoa nos postos de trabalho. Durante a vigência, ou dominância, no pensamento humano da ética económica da religião, as condições pessoais do desempenho são avaliadas: seja a virtude que a descreve a pessoa à propriedade, seja o cultivo do mal e da ideia de ser pecador e de transgredir que se junta ao uso do corpo no trabalho. Na taxinomia que propus, a pessoa que está mais perto da divindade é a que sabe que não usa o seu corpo  na produção, enquanto que mais perto da terra está quem só tem o seu corpo para lidar com a Natureza. O pecador, sendo aquele que não tem alternativa de conhecimento, é considerado ignorante e possui um lugar fixo nas relações sociais: fora da estrutura dos justos, fazendo o trabalho mais bruto, mais barato e mais “baixo”. É preciso ver a correlação entre o comportamento classificado como pecado e a ausência de saber especializado em todos os campos específicos da actividade, e este pecador específico é bêbado, o opulento, o ignorante dos cuidados com o seu corpo e a sua saúde, o não diligente e o subserviente. Não é o pecador geral que vive em tal estado porque tentou saber e tornar-se independente da divindade, mas o específico que está associado à natureza e à falta de sabedoria para controlar a sua capacidade. Esta é a função do pecado desenvolvida pelas ideias económicas investidas na religião pela letra da lei.

 10. E a eficácia simbólica?

          É o que eu me pergunto também. Porém, para ter uma resposta, há que entender a eficácia do simbólico, o totem. Durante todo o meu argumento insisti em que a sistematização do mal é o que permite entender o real que orienta a construção das relações sociais, o meu outro conceito para definir reprodução social. Recordo o exemplo do australiano que morre ao ingerir a comida do chefe, que Freud relata em Totem e Tabu (1912); penso nos milagres, não naqueles que cada religião alega para sistematizar e provar a relação da palavra com o real, mas naqueles em que as pessoas pensam e que acontecem na rede de circunstâncias e casualidades com que vão coordenando as suas ideias com o mundo material. Josep Comelles, no ano de 1989, durante uma troca de ideias, quando proferi a conferência que este texto reproduz, propunha-me uma distinção entre prevenção e cura, onde a virtude traz a graça que permite resistir ao mal, e a confissão repara a alma do mal feito. Penso que, para que o simbólico tenha vitalidade, deve emanar da própria criação da actividade das pessoas. É verdade que a sistematização do mal cria a culpa, ou como diz Le Goff (1981): repressão. É esta a eficácia do simbólico do pecado, criar um sentido para alguma coisa que vai suceder ou sucedeu, como a morte ou a doença às quais o pecado está associado. Contudo, talvez isto só aconteça em grupos onde se perdeu a capacidade de gerar outras teorias, como a de reconstruir a saúde, a de cuidar do corpo. A eficácia simbólica do pecado derivaria do entendimento do texto do qual provém, que não é manipulado nem interpretado pelas pessoas: ao contrário, existe, inclusive, um mediador: o padre, que é a memória do que nesses textos está contido. Penso que é de insistir que a eficácia do pecado reside na exacta medida da explicação que dá acerca dos limites possíveis da conduta social e individual e conhecimento da suas consequências sociais. O sentido pragmático de quem, se não trabalha, se não produz o seu alimento ou o seu salário, tem de defender os limites do que lhe pertence; quando esse limite é violado, começa o pecado, se necessário, com a agressão. É provável, contudo, que para entrar neste campo seja preciso mudar de registo e de nível de análise. Aqui só tentei entender o papel que o conceito tem na construção da reprodução.

BIBLIOGRAFIA

A Bíblia (1611), 1952, Collins Clear-Type Press, London.
COMELLES, Josep Maria, 1989: “Ve no se Dónde, Trae no se qué. Reflexiones sobre el Trabajo de Campo en Antropologia de la Salud”,  in ARXIU d’ Etnografia de Catalunya, nº 7, Tagarrona.
FIRTH, Sir Raymond, 1929: Primitive Economies of the New Zealand Maori, George Routledge and Sons, Londres.
FREUD, Sigmund, (1913), 1919: Totem and Taboo. Resemblances between the psychic lives of Savages and Neurotics, George Routledge and Sons Londres.
GOODY, Jack, 1970: The Myth of the Bagré, Clarendon Press, Oxford.
KANT, Immanuel (1793) 1992: A Religião no limite da simples razão, Edições 70, Lisboa.
LE GOFF, Jacques, 1981: La Naissance du Purgatoire, Gallimard, Paris.
MALINOWSKI, Bronislaw, 1948: Magic, Science and Religion and other essays, Bacon Press, Massachusetts.
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*Conferência proferida na Universidade Central de Barcelona, em 14 de Março de 1989. (Traduzido do castelhano por Filipe Reis).

domingo, 24 de julho de 2011

A reprodução no celibato



celibato        Quando falo de reprodução social, refiro-me à quantidade de recursos, bens e pessoas, que cada grupo social deve reservar para garantir a sua continuidade, bem como o conhecimento com o qual se organiza a relação entre pessoas e coisas e a sua gestão. A reprodução dos homens é um processo ligado aos bens, um sistema complexo, no qual a forma em que os bens são possuídos é parte da conjuntura histórica que define a estrutura em que os homens são feitos. Este facto acaba por explicar, na minha opinião, a coexistência de duas formas reprodutivas dos seres humanos: o casamento e o celibato. Do primeiro provém a filiação vinculada aos bens; do segundo, provêm os filhos sem pai social, tratando-se de uma filiação não vinculativa aos bens e mantida num sistema de parentesco extenso, no qual o apadrinhamento é o laço que define o lugar social de cada um.
Tanto a reprodução através do casamento como a reprodução por meio do celibato estão definidas e classificadas, estruturalmente previstas, pela lei positiva e pela religião. Ambas são formas de distribuir pessoas pelos bens em sistemas camponesas onde cada grupo doméstico necessita criar mais mão-de-obra, para mobilizar a sua tecnologia, do que aquela que pode sistema de propriedade que lhe retira parte do seu produto.
Manter com o resultado do seu trabalho, geralmente submetido ao proprietário dos bens, a um grupo doméstico completo, a uma família alargada, ou um grupo pequeno, denominado doméstico. Relações que nascem ou do casamento ou do celibato, denominado também amancebamento. Amancebamento, é dizer, uma relação amorosa, companheira e reprodutiva, permitida pela lei civil e canónica, que a exime de pecado ou dde criminalidade, sendo os descendentes naturalmente filhos dos amancebados, com os nomes do pai e da mãe que apenas tiveram como ritual, essa paixão de estarem juntos, cuidando-se mutuamente entre eles e dos filhos, sejam dos amancebados, ou prévio ao amancebamento. Acção que levara a Assembleia a legislar sobre o divorcio,  a partir de 1966 e incluir dentro do Código Civil, emendado nesse ano
Já antes me referi (1980) à produção com base no grupo doméstico e sua variação em relação ao desenvolvimento histórico. O casamento e a sua ligação com a produção de produtores num sistema em que os camponeses ganharam acesso à propriedade, foi analisado por mim em relação ao rito e ao lucro (1985); igualmente, contextualizei as ideias doutrinais e canónicas que, antes do direito positivo, definiam a relação entre pessoas e destas com os bens (1986-a,1986-b). No presente texto quero discutir de que forma o celibato camponês faz parte do sistema reprodutivo, ou seja, como complementa o trabalho do casamento, a adopção, o funcionamento em família extensa; e como se processa a reprodução celibatária num sistema de propriedade, vinculada ou privada, em circulação, que, à partida, exclui pessoas da propriedade e define a massa de bens que circularão apenas através da herança e casamento (posteriormente através do contrato de compra e venda); bem como, ainda, o tratamento dado ao produto da reprodução celibatária – o bastardo –, de modo a assegurar a sua inclusão no processo de trabalho, através da aplicação de normas éticas que o situam claramente dentro do grupo social, do qual a bastardia constitui a filiação complementar à do casamento. 1

2 – O lugar

Pinheiros é uma das catorze aldeias de uma freguesia das montanhas do Centro de Portugal. Os registos mais antigos dos seus habitantes que encontrei, de 1668, e a reconstrução que fiz da aldeia e da sua população, permitem-me fornecer alguns dados sobre o passado. A terra, dedicada à vinha, pertence, em sistema de morgadio, à família C, residente numa das aldeias próximas da igreja, no vale de Dois Rios.
As terras de Pinheiros, como as da maior parte da freguesia, estavam repartidas, em quintas de dimensão variável, pelos aforados detentores de um contrato, e tinha uma casa central, pertença do morgado local, bem como seis outras, de quinteiros que se foram aparentando entre si; era comum estes serem designados proprietários. A sua propriedade, transmissível, consistia no uso, abuso e usufruto da terra. É um quarto direito, o da raiz da propriedade, que liga (ata) o quinteiro ao senhor. A terra, vinculada a ele, não podia sair do seu controlo e mão, como romanicamente se diz, na medida em que se trata de um direito ou forma definida de acesso, pela qual o filho mais velho é proprietário através da herança. O quinteiro, ou foreiro, ou enfiteuta, pode ter toda a propriedade mas, a raiz, ou o conceito de raiz da propriedade, limita-o e dirige a produção dos seus bens. Cada quinteiro, por sua vez, conta com trabalhadores jornaleiros que, sazonal ou permanentemente, trabalham para ele em troca de comida, casa e eventualmente, algum interesse pecuniário. O morgado recebia das mãos do rei o direito de ter a terra, tornando-se proprietário centralizador e redistribuidor por meio de aforamentos; o jornaleiro recebe a sua do trabalhador da terra do senhor.
Pinheiros contava também com baldios, trabalhados em sistemas de terraços, pelos jornaleiros. A azeitona, o vinho, o centeio e o trigo, bem como animais de tracção, constituíam os produtos; tal como na maior parte da Europa. O milho e a batata americanos incorporaram-se e mais tarde, tal como a  vinha, quando a filoxera matou a original, em começos do século XX.
Os meus dados, sistematizados apenas no referente ao período de 1983-1864 (pág.135) devido ao trabalho de campo ser recente, mostram que, às sete casas originais, haviam-se já agregado outras nove até 1850, oito de 1850 a 1900, até se atingir o número de sessenta e oito com que contava na época do início da minha pesquisa. O crescimento deveu-se aos casamentos entre as pessoas das quintas originais, praticando-se até 1950 um casamento acentuadamente endogâmico. Entre 1983 e 1864 celebraram-se duzentos e sessenta e nove casamentos, tendo nascido setecentas e cinquenta e duas crianças; destas, seiscentas e cinquenta eram dos matrimónios e cento e duas de mães cujos parceiros sexuais não foram reconhecidos pelos meios da cultura letrada, ainda que, através dos comportamentos religiosos e mesmo de dote, se possa reconhecer a sua filiação.
Os filhos de fora do casamento – legítimos, apesar de tudo, devido ao facto de o sistema estar previsto nos códigos – foram produzidos por 49 mulheres, das quais só duas eram viúvas; as outras não tinham qualquer vínculo oficial com um homem, ainda que tivessem tido um vínculo social, e depois, de parentesco espiritual, com a família do procurador. Estas mulheres pertencem, juntamente com outras que não tiveram filhos, ao grupo de celibatárias da aldeia; no qual se contam também quarenta e seis homens que nunca casaram. A partir dos factos, a estrutura do celibato pode apresentar-se da seguinte forma: entre 1983 e 1864, noventa e oito adultos que podiam ter casado não o fizeram; destes, oitenta já morreram, número que faz parte dos trezentos e quarenta e sete casos de mortes entre as datas mencionadas, para o grupo dos adultos. Para completar o quadro das pessoas, e uma vez que os dados económicos não estão todos elaborados, posso dizer que, do total de pessoas casadas e solteiras que morreram, há uma classificação trinta e cinco pequenos proprietários ou quinteiros, três caseiros, sessenta e sete jornaleiros ou camponeses sem mais terra que os baldios do monte, dezassete artesãos e um proprietário maior, todos eles contados de entre os homens que casaram e que constituem os cento e vinte e três grupos domésticos que tenho em observação, entre 1983 e 1864. A estes, há a juntar os celibatários, sobre os quais irei, de seguida, falar.
Só uma nota em tom de comentário, primeiro: de entre os chamados proprietários, alguns voltam a figurar como jornaleiros sem terra, enquanto que um elevado número passa a ser proprietário entre as datas indicadas, especialmente depois dos anos de 1950; em segundo lugar, algumas perguntas: de entre os celibatários, os homens tiveram filhos? De entre as mulheres, quem eram os pais dos seus filhos? De entre os que não tiveram filhos, o título precário de proprietário explicará o facto, como em Bourdieu (1962) e O’Neill (1984)?
O facto de conhecer a paternidade dos celibatários, a sua situação social e a sua capacidade reprodutiva, por uma parte; e por outra, analisar a condição das mulheres celibatárias que têm filhos, podem permitir avançar a hipótese de que tal condição é uma defesa patrimonial que, associada a uma concepção cultural da hierarquia das pessoas, permite criar mão-de-obra não vinculada aos bens, num campesinato que não está estabelecido sobre a terra, mas que, apesar disso, casa e não casa como se tivesse bens.

3. O celibato

O conceito não é um acaso demográfico, como já o disse Bourdieu e desenvolveu O’Neill, para Portugal. Mas este facto não se confirma somente com os dados que eles apresentam: na génese do campo religiosos, isto é, na teologia, na lei canónica e na doutrina, estão previstos os casos em que o celibato é aconselhado. O Evangelho (versão de 1964) fala dos eunucos feitos pelo amor de Deus e S. Paulo (Corintos, I), insistindo que o casamento permite evitar a fornicação, logo o fogo eterno; mas quem não puder evitar o casamento que se mantenha celibatário. As Confissões, de Agostinho de Hipona (363), não sendo propriamente uma obra erótica, contém todo um material resultante do arrependimento do pecado da luxúria, o qual, apesar de tudo, não é tão relevante para a cristandade, como nos recorda Delumeau (1983).
Pergunto-me porquê o ideal do celibato, que funda toda a hierarquia intermediária entre o comportamento e o prémio ou o castigo final; um celibato ideal, para mais: só no Portugal de 1383-1412, as legitimações feitas por el-rei D. João (Viegas, 1984) referem filhos de padres e de homens casados. É possível pensar que, na sociedade patriarcal monogâmica, como forma de circular os bens, a subtracção dos varões à reprodução, revestida de ideal salvação, torna mais apertado o campo de circulação dos bens apropriados. Podemos, aliás, verificar que, na conduta camponesa, em geral, quem não tem bens não casa, a não ser que os seus bens sejam a sua prole, sendo por esta razão que os “meus” jornaleiros são todos casados.
O que é igualmente interessante é o facto de o celibato das mulheres ser tomado por garantido, numa concepção cultural de homem agressivo, coroada no século XVI pela imagem violenta e ambígua de Don Juan (Molière, 1665; Mozart, 1787), em que é a mulher que não é pessoa – não tem bens, não administra – sendo é sujeito natural do celibato. Assim sendo, é interessante verificar como são as celibatárias que têm filhos aquelas que são associadas à concepção da pobreza que é o resultado do pecado: da preguiça, da luxúria, dos que se salvarão gratuitamente por serem pobres, donde pouco importa que pequem ou não. Existe uma concepção de homem e mulher que, numa cultura que apropria os bens através do homem, está por detrás da reprodução celibatária e da recomendação de castidade que o código do Direito Canónico sistematiza. Na figura do celibatário, conceito masculino, falta mencionar a história do fundador da racionalidade e do livre arbítrio católico – Tomás de Aquino (1267-1273) –, salvo do desejo aos 17 anos graças a um milagroso cinto de castidade.
A concentração da atenção do celibato sobre a subtracção do varão, seja na prática social, seja por um subterfúgio da sociedade da cultura letrada na época da sua maior expansão – no positivismo –, tem início quando a propriedade da terra passa lentamente para os camponeses. Nos meus arquivos posso identificar os nomes dos pais celibatários ao lado das mães, até à época do Código Civil (1867;1966,1999): ou seja, quando a ideia do cidadão de direitos se universaliza e os bens se  redistribuem, numa sociedade do contrato onde só uma estirpe clara  faz circular bens; parece que nem toda a lei pode ser clara para dirigir a sua circulação.
Penso que se trata do momento em que a filiação espiritual é sistematizada e o apadrinhamento passa a ser importante não só como apropriação de trabalho, mas como protecção e classificação de pessoas, feita através da lei moral. Para o saber, apenas podemos argumentar com casos. Antes, há que recordar, todavia, que a lei proibia o casamento aos vagabundos, categoria em que recaíam a maior parte dos jornaleiros, uma vez que se deslocavam de um local para outro à procura de trabalho; seria necessário saber o que diz a lei sobre a possibilidade de os pobres casarem. O que interessa agora, todavia, é percorrer os casos em que há reprodução celibatária, para conhecer a sua estrutura: declino, de antemão, a possibilidade de conhecer a sua extensão e importância como fenómeno. Somente desejo saber qual o sentido, a razão cultural, do celibato, especialmente quando existe reprodução: e a forma de explorar o fenómeno é ir do que se conhece no trabalho de campo, para o que só se pode reconstruir e contextualizar através da estrutura histórica.
O que, em primeiro lugar chama a atenção, é o facto de os celibatários se apresentarem em grupos de irmãos, co-proprietários ou não; e de a reprodução celibatária decrescer até quase nada, desde que a propriedade é camponesa. Vou, no entanto, considerar , apenas, os factos que falam de uma população estável, sem que eu possa saber se eram ou não vagi. Quem lhes diria, por fim, qual o contexto letrado dentro do qual podia desenvolver a sua conduta, era o padre, essa memória do povo que se ergue entre a previsão oral do comportamento e a lei. Porém, como amigo não fala, vejamos factos e texto em contexto.
Parecem existir dois factos coexistentes no celibato: a produção de uma filiação não vinculada aos bens, por meio da subtracção do nome do pai biológico que não declare a sua vontade de ser o social; e a concepção e a situação social da mulher. Num sistema de transmissão de bens por via do casamento, poder-se-ia dizer, à luz das ideias cristãs que falam de pobres e ricos, que existem mulheres casáveis (marriageable women) e não casáveis. A razão de ser ou não casável é a utilidade que elas possam ter de constituir um grupo de trabalho: como já afirmei noutras ocasiões, a economia dos grupos domésticos camponeses passa, também, pela fabricação da sua própria força de trabalho, sendo esta feita de filhos, ou de irmãos e parentes. Os filhos têm a vantagem de renovar o ciclo doméstico, mas dividem o património; a combinação de filhos de um sibling com o celibato de outros, proporciona os dois elementos, a concentração quase germânica da propriedade na capacidade de trabalho do conjunto e a renovação do ciclo doméstico pela descendência de um dos membros.
Este tipo de celibato atravessa os cento e cinquenta anos de história de Pinheiros que até agora sistematizei, onde, de entre os celibatários actuais, existe um grupo de quatro irmãos – os M. –, homens e mulheres já na casa dos 60 anos de idade, cujos outros quatro irmãos tiveram filhos. Outros três grupos são de um irmão e duas irmãs, outro de quatro irmãos e outro ainda de duas irmãs. No caso dos celibatários mortos, existem onze casos de irmãs distribuídas ao longo de cem anos, ou seja, em diferentes circunstâncias históricas: desde a propriedade vinculada até à liberalização da compra camponesa. Estes somam trinta e três pessoas das oitenta que nunca casaram. A composição dos grupos celibatários actuais, a distribuição demográfica e as suas histórias de vida, apresentam certos traços em comum: das dezoito pessoas que, na actualidade, nunca se casaram, os dez homens eram filhos de trabalhadores sem terra que se ausentaram por muitos anos, em países como a Austrália, Argentina e a Alemanha; as mulheres, oito no total, nunca saíram da aldeia como emigrantes – algumas tão-pouco para irem à cidade mais próxima – à excepção daquela que saiu da aldeia para ir ao Rio de Janeiro, de avião, aos 65 anos.
Estes homens, nos países para onde emigraram, como se pode observar nas suas histórias de vida, estão socialmente situados de forma a que o olhar etnocéntrico não permite serem escolhidos ou aceites pelas mulheres do país de acolhimento; ou são eles próprios que não têm interesse em provocar matrimónios mistos, incómodos por via do cruzamento de ideias e línguas. Por outro lado, o objectivo do emigrante que estudei, ou melhor, do tipo que estudei, é juntar dinheiro para comprar a terra que, na aldeia, havia entrado no circuito de comercialização. Os irmãos M., que foram para a Argentina e voltaram a trabalhar a terra que compraram, são dois de oito filhos de um caseiro. Os irmãos que casaram na aldeia também haviam emigrado depois de haverem casado com mulheres que tinham uma pequena herança. Estes dois – J. e E. – foram, os que, mais jovens, ficavam a trabalhar com os seus pais, como caseiros dos proprietários R. R. e C. Os pais, as duas únicas irmãs e eles, os mais jovens, formavam o grupo de trabalho que permitia a todos sobreviverem; os pais caseiros, como eu já observara na Galiza (1980), geralmente «colocam» os filhos mais velhos em casamento, na medida em que a multiplicação de descendência jovem lhes permite substituírem o filho que libertaram, por volta dos 30 anos de idade, ao prepararem-no para um casamento que o coloca na terra de outrém, a partir daí, sua.
A morte dos seus pais e antes da sua velhice, bem como a mudança nas relações de trabalho causadas pelas compras e vendas de terras, permitem aos dois irmãos saírem, comprar terras que as irmãs trabalham e recrutar descendentes de entre os sobrinhos, filhos de seus irmãos, de quem são padrinhos – o que, todavia, está previsto pela lei, pelas regras éticas da doutrina e pela significação económica que as pequenas terras de uns têm para os outros e a força de trabalho que, entre todos, constituem. Os celibato dos irmãos M., como dos quatro filhos do Sr. J. – jornaleiro sem terra até os filhos emigrarem –, dos S. e das irmãs J., adquire significado na medida em que cada um se integra diversamente no grupo familiar extenso que administra a terra e o trabalho com uma noção que diríamos germânica (não individualista românica) da relação com os recursos. Estes celibatários não necessitam de se casar, ficando a sua reprodução melhor assegurada com o seu não casamento. Acerca de sentimentos, não sei se tem cabimento falar, em relação a um sistema tão estreito de construção de recursos como é o último período da história da aldeia; e, no que diz respeito ao erotismo, é provável que fosse resolvido na rua da lanterna vermelha da cidade próxima de Viseu, onde os homens se deslocavam. Quanto às mulheres, só se pode dizer que, no presente, não têm filhos.
Contudo, nem todos os celibatários asseguram a sua reprodução apenas com a sua integração diferenciada na família. Um dos quatro homens não casados teve um filho com uma mulher que chegou à aldeia como empregada doméstica, enquanto que o único solteiro, por sua vez, filho único, teve também um filho com essa mesma mulher. Ambos ampararam a mãe com terra e dinheiro, enquanto que membros da sua família foram os padrinhos, aspecto que desenvolveria de seguida. Por enquanto, só quero retomar os conceitos de mulheres «para casar» e de mulheres «para não casar». De uma parte, temos os homens e as mulheres subtraídos à reprodução humana vinculativa, que permite assegurar a de um grupo maior: de outra, temos as mulheres celibatárias com filhos, todas elas  pobres, isto é, não estão vinculadas a recursos. Das 49 mulheres acima citadas, nenhuma tinha outro bem que não o seu trabalho e o seu corpo, sendo, por sua vez, filhas de jornaleiros.
O que é que permite que as filhas celibatárias dos proprietários não tenham filhos ou, se os têm, que não fiquem com eles? Creio ter já discutido suficientemente a ideia de uma filiação não vinculada a bens – mais patente ainda nos casos das mulheres proprietárias que não deixam provas da sua maternidade –, isto é, não registam os seus filhos como tais, o que é possível dada a forma de provar o real por meio da raison graphique da cultura camponesa. Não se trata apenas de não os expor, trata-se de não os inscrever, registar. A forma do celibato mostra de que forma a circulação dos bens se prende com a manutenção de diversos estatutos das pessoas. Um facto a destacar: na concepção da propriedade vinculada, uns transmitem bens, ou por herança ou por casamento, ou por aforamento, enquanto que outros fazem bebés. Tecnicamente, se a cultura camponesa cumprisse as prescrições da doutrina, apenas os casados teriam filhos; mas como aquilo de que se trata é de uma racionalidade na gestão dos recursos, da qual emana por sistematização dos teólogos a ideia deduzida de Deus, o assunto é diferente. Os que não estão vinculados à terra, ou os que mais tarde não a adquirem, sofrem de uma exclusão à partida, que lhes confere outra tarefa dentro da sociedade, a serem pobres.
Como é conceptualizado um pobre na doutrina? (Com isto não estou a propor que as ideias decidam o que se passa na realidade, mas simplesmente que a sistematizam e orientam).
A cultura camponesa, contextualizada pela terra da lei, tem uma prática e uma ideia, legitimada pela doutrina, pela teologia e pela lei positiva, que prevê uma reprodução celibatária, no seio de um sistema e que estão na base da classificação das mulheres.

4 – O produto

Parece, pois, possível afirmar que o celibato é reprodutivo, seja porque há uma quantidade de homens que são desviados do processo através do qual circula a riqueza e os seus direitos constrangidos, seja porque é em si um sistema de criar pessoas, ou, uma filiação legalmente prevista como não vinculada aos bens e pessoas. Neste último caso, haveria que argumentar que nem todos os filhos dos transmissores de bens se casam, quando a realidade é bem contrária: da família proprietária morgada, entre 1862 e 1920, todos os filhos casaram, excepto dois que morreram celibatários, mas aos 30 anos. Na outra família proprietária da aldeia, a família F, todos os filhos morreram celibatários aos 80 anos. Os filhos dos morgados têm um nível de transação na circulação de bens e prestígio da sociedade hierarquizada e casam com facilidade – como os filhos de qualquer proprietário de patrimónios concentrados e extensos. Os filhos do proprietário F que morreram, todos eles, celibatários, morreram na miséria em consequência da administração do património feita pelo seu pai louco. Os filhos de outros proprietários que não casam, entram no sistema da integração diversa dos membros da família. A questão é saber se o celibato, ou melhor, de que forma o celibato – que se dá no seio de uma teoria de circulação de bens associados a pessoas e que privilegia o casamento e a herança como suas vias – é um sistema reprodutivo em si e não um sistema de esterilidade ou de castidade daqueles que vêem impedida a sua capacidade transmissora de bens.
O meu problema, como tenho vindo a argumentar, é juntar o não casamento com a filiação. É claro que, de entre as celibatárias, são as que não produzem vínculo, que têm filhos, mesmo que todas possam ter bebés. Que força permite que as celibatárias proprietárias possam morrer, aparentemente como única garantia de que tal instituição existe, para parafrasear Brian O’Neill (1984)? Ou nunca tiveram filhos, ou, o caminho adoptado é o da roda dos expostos, ou a não inscrição dos registos, que não gera direitos, como já referi. Quanto aos homens, excepto para os casos actuais, é virtualmente impossível provar a paternidade nos casos históricos. Examinei de forma detalhada a lista de padrinhos de baptismo dos filhos das mulheres celibatárias, pensando ser provável que o padrinho ocultasse o pai biológico, seguindo, assim, uma pista oferecida pela cultura. Foram estes os dados que consegui.
De cento e dois nascimentos fora do casamento, vinte e oito proprietários solteiros foram os padrinhos – um deles três vezes –, trinta jornaleiros solteiros foram padrinhos de filhos das suas irmãs, ou de filhos de mulheres com as quais não parecem unidos por parentesco; por vezes, trata-se de homens que vêm de outras terras. De entre os padrinhos, nove são proprietários casados, entre os quais se destaca o último morgado, o qual tinha a fama de grande reprodutor, seis são trabalhadores casados, parentes da mãe, e dois são jornaleiros viúvos. Do conjunto, existem três tipos de factos que ajudam a interpretar: o Direito Canónico proíbe, na versão anterior à reforma (C.765) e no novo (C.874) que os pais sejam padrinhos, como se passou em dois casos de Pinheiros. Um segundo tipo de factos é que, até 1964, o número dos pais não casados figura no registo, sendo o padrinho outra pessoa; nos dois casos que correspondem à época que estudo, são irmãos do pai da criança – o próprio facto da inscrição pode explicar que se trata de pessoas diferentes. Um terceiro tipo é o actual, onde, em todos os casos, existe um irmão ou irmã do pai que faz de padrinho ou madrinha. O que me leva a pensar que por detrás do sistema de apadrinhamento – como segurança em geral – possa estar escondida a figura do pai biológico, é o facto de se contarem entre os padrinhos os filhos solteiros do morgado, apadrinhando os filhos das suas criadas ou jornaleiras solteiras, e uma vez cada um – facto que é significativo somente se contextualizado com o costume dos filhos dos senhores experimentarem a sua virilidade com a criadagem, as dependentes ou os dependentes.
Não afirmo que o próprio pai seja o padrinho, mas sim que a condição do padrinho esboça o pai. É o caso dos jornaleiros solteiros, o grupo que, predominantemente, apadrinha os filhos do seu amigo ou parente. Todos eles são jovens entre os 17 e os 22 anos, idade também procurada para dar um filho em baptismo. O problema da identidade do pai subsiste, apesar de ser claro que as mulheres sedentárias de uma aldeia tão fechada tenham os seus filhos com os homens da aldeia que lhes podem proporcionar maior segurança. Afinal, não é, apenas, a masculinidade da virilidade somente o que seduz, mas sim o conjunto de recursos que a rodeiam que acabam por construí-la, mesmo que esta seja efeminada, ou machista. É sabido, que um proprietário de ovelhas podia ter mais mulheres a quererem casar com ele do que hoje, quando ser pastor é definido como ofício de «parvos e malcheiroso». A virilidade precisa de, pelo menos, um recurso, para ser masculina.
O sistema de parentesco, contudo, é eficaz e legislado com sanções para o não cumprimento do encargo, tendo igualmente efeitos pragmáticos na aliança de trabalho. Entre a sociedade camponesa existe o conceito cultural da apropriação dos filhos e dos afilhados, ao qual correspondem direitos que o afilhado tem sobre os bens do padrinho, ou pelo menos sobre a sua massa de consumo – ou trabalho. Que tantos proprietários, jovens ou não, sejam os padrinhos, é o sinal de que este sistema é o sistema que, por fim, dá a figura de autoridade e bens a um filho destituído, que é agora socialmente referenciado dentro do grupo através do padrinho que tem. O apadrinhamento é diferente da instituição de compadrio, é  filiação do filho do celibato. Resta saber ainda como é que todas estas mulheres podem ter estes filhos e continuarem a vida ritual para a qual não estariam, tecnicamente, autorizadas – especialmente as que persistem nas suas relações, evidenciadas pelo eventual nascimento dos filhos. Por outras palavras, o celibato inclui uma fornicação mais permanente, nem sempre resultante num fruto. No caso das mulheres que no presente têm filhos fora do casamento, todas elas são desvinculadas de famílias e de bens: sejam as fileiras de mães sem laço oficial, sejam mulheres que vêm de fora. Para estas mulheres, não reservadas para transmitir bens, canaliza-se o desejo dos jovens. Note-se que no caso de uma delas – H. –, os três filhos que têm pais jovens, de 17 a 23 anos, no caso de outras, os pais são os proprietários que lhes dão trabalho, dentro do qual, no quadro da relação arbitrária senhor vinculado/trabalhador excluído, parte do contrato para trabalhar e viver é aceitar o vínculo sexual.
Na sociedade vinculada, primeiro, e proprietária depois, a hierarquização da mulher parte da relação com a terra, o que as divide entre criadoras ou produtoras de proprietários, e produtoras de trabalhadores; este último tipo de mulher, juntamente com a sua capacidade de trabalho e de sexualidade, tem, de uma parte, o filho, que futuramente a ajudará a si e ao pai, ou à família, a ela vinculada pelo baptismo, definido pela ética cristã que converte em seus aliados do pai e familiares. Creio, porém, existir outro elemento a destacar na possibilidade de fornicar, mais facilmente, com uma jornaleira do que com uma proprietária: o que faz  uma pessoa, na sociedade camponesa, não é a dignidade cristã do indivíduo, mas sim a sua possibilidade de administrar, isto é, a de ter manipular recursos. As jornaleiras não têm mais estatuto, numa sociedade hierarquizada em ofícios e estatutos, do que ser um pouco adscrito à terra, participar do bem-estar sem interferir no percurso da circulação dos bens e de ser capaz de dar à luz mão-de-obra. Estas são as ideias que me parecem marcar o celibato, e que passo a sintetizar em forma de conclusão.

5. Conclusão

A hipótese que quis discutir é apenas a exploração de uma situação possível quando as pessoas são classificadas como parte dos bens, de que ambos são recurso: de uma parte, o centro distribuidor de terra através de contratos, da outra, o grupo social que desde o começo fica excluído de terras e de transmitir recursos, pelo que a transmissão se processa através da ligação pessoal de classes diferentes de pessoas – uma subordinação pessoal por meio da qual a riqueza é feita. Por outra parte, há que considerar apenas a relação que os camponeses têm com a produção e com a cultura letrada: a primeira é aleatória até à época da propriedade; a segunda é de desconhecimento, pelo que o contexto lhes é fixado e transmitido por palavras, símbolos e o conjunto do campo legal e religioso que, conjuntamente com as suas estratégias de resposta, governam a sua vida.
A minha tentativa de explicar o celibato como reprodução de uma filiação não vinculada, só é possível ao aplicar-se a uma sociedade, na qual os bens, pelo vínculo ou pelo preço, não estão, enquanto recursos, ao alcance de todos; e numa sociedade que concebe como possível, a partir da materialidade que é combinar processos de trabalho com processos de transmissão de bens de produção de produtores, a existência de uma classe estéril. Uma classe que faz filhos para trabalharem mas não para transmitirem, graças a prever na lei, na moral, na religião e nos costumes, o celibato. Celibato reprodutor que só é possível por existir na cultura uma relação entre o facto da propriedade dos recursos e a noção de bem e de mal que classifica e hierarquiza as pessoas em alianças legalmente definidas.
Lisboa, Dezembro de 1986.
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* Traduzido do castelhano por Miguel Vale de Almeida – Antropologia Social – ISCTE. Publicado em Ler História, nº.11, 1987, Lisboa. Versão abreviada do original em francês publicado em Études Rurales,  N.º 113-114, Janvier-juin,1989, Paris


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1. . Edward. Westermarch (1891) no referente à Europa do século XIX e outras culturas; bem como Bronislaw Malinowski, 1913; Havelock Ellis, 1915; Meyer Fortes, 1949-a; Jack  Goody, 1976 e 1983.

O celibato como sistema reprodutivo de pessoas, bens e saberes em aldeias camponesas

        Este texto é a reconstrução por escrito das minhas palavras sobre a reprodução no IV Congresso de Antropologia de Espanha, realizado em Alicante. Ao trabalhar o argumento que apresentara com base num esboço, outras ideias levaram-me um pouco mais longe em relação à exposição original. De facto, este texto é fruto do estudo que venho desenvolvendo sobre racionalidade, reprodução e estratégia, para o qual me sirvo de dados sobre camponeses europeus, estando, portanto, entrelaçado com o argumento que debato em vários outros textos dispersos pelo mundo. É, por isso, que no final, incluo uma lista deles que, oxalá, pudessem juntar-se a este para sua melhor compreensão. Em qualquer caso, o que pretendo aqui é inspeccionar as ideias e factos que, não sendo das aldeias estudadas, fazem parte da etnografia que um antropólogo europeísta deve consultar e que é possível encontrar na História, na lei positiva e canónica, na religião como na doutrina, Igreja e fiéis, assim como na economia teórica e conjuntural. É este o contexto dos factos da lógica camponesa que, na sua dimensão própria, está registado nas relações sociais e na tecnologia, que são os textos do saber oral e da sua cultura.
         Estou agradecido a Dolores Comas, Aurora González e Jesús Contreras, amigos e companheiros da causa antropológica, pelo convite ao seu simpósio e pela extraordinária simpatia com que me trataram. Várias semanas depois cheguei a Cambridge para escrever durante todo o verão (a única época do ano em que nós professores podemos calar-nos e pôr por escrito o que diremos aos estudantes no próximo curso), estando agradecido ao meu amigo e colega Alan Macfarlane, que me proporcionou um lugar calmo para trabalhar no celibatário King’s College. Como sempre, escrevi este texto com a cabeça cheia das perguntas dos meus estudantes de licenciatura e doutoramento, tentando encontrar resposta para as mesmas. Este ano académico, que terminou um Junho de 1987, viu licenciar-se o primeiro grande contingente de antropólogos que temos formado no departamento; alguns  deles assistiram a este congresso em Alicante, e todos me encheram de questões estes anos. Oxalá lhes tenha respondido e oxalá venham a ter muito êxito. A eles dedico a presente conferência-texto, com o carinho do seu velho professor.

1. O problema

         Quando um estudioso da reprodução social se centra na produção de produtores, como tenho feito nos últimos anos, acaba por preocupar-se com duas coisas: explorar as avenidas laterais que compõem o conjunto dos seus dados e encontrar uma metodologia apropriada para argumentar. No que diz respeito à primeira questão, já o tenho afirmado outras vezes (1985), o celibato é parte do sistema de produção de produtores , daí o título deste texto.
 O celibato faz parte do sistema, não porque o casamento de uns impeça o de outros, nem porque para que alguns casem, outros deixem de fazê-lo; nem porque nos sistemas de herança indivisível os herdeiros excluídos não tenham recursos e fiquem célibes. De facto, a produção da sociedade, como gosta de dizer o meu amigo Maurice Godelier, é algo mais complexa do que os arranjos quantitativos com que nós investigadores simplificamos a vida das pessoas nos nossos textos. Há um pensamento complexo que fabrica uma rede de relações onde os motivos do amor familiar e os da transmissão de bens e circulação de pessoas podem estar imbricados com motivações, como Bernard Vernier (1984), Hans Medick (1984) e Jean Louis Flandrin (1976), entre outros, nos têm recordado ultimamente: emoções, desejos, paixões, conveniências. Contudo, como estes e outros autores reconhecem, não são estes os únicos elementos que condicionam as decisões, pois qualquer grupo social tem de substituir os membros que perde por morte e treinar os que adquire por nascimento. Além disso, ao longo do ciclo de desenvolvimento entre a vida e a morte, os grupos sociais vão resolvendo como combinar pessoas entre si e com as coisas, para que a história se desenvolva e continue. Este simples facto apresenta-se também em relação ao saber: o processo de substituição dos que morrem, de produção dos que nascem e de combinação de pessoas entre si e com os bens, faz parte do saber acumulado dos grupos, o qual reside na memória das pessoas que deste modo se reproduzem.
         O saber como, quando e com quem se fazem as coisas é um dos bens que deve ser preservado e penso que faz parte do raciocínio com que se tomam as decisões nas aldeias camponesas. Nestas últimas, o saber é normal transmitido e guardado em textos que não são os habituais da cultura letrada (os livros e a hermenêutica), e o conteúdo do saber é demasiado complexo para ficar retido na memória de uma só pessoa, sendo transmitido e preservado pela divisão das funções sociais, como gosta de afirmar Maurice Godelier (1982). Isto tem uma consequência que intervém na formação de um grupo de célibes, como discute Caroline Brettel (1986), o qual não se explica unicamente pelo sistema demográfico, que mostra uma variabilidade histórica. Penso também que a falta de homens ou mulheres para casar não é um problema real, é apenas estatístico, do modelo do cientista. Pelo contrário, os grupos sociais, especialmente em sistemas de trabalho camponeses onde produzir filhos é tão importante como produzir milho ou batatas, esforçam-se ao máximo por juntar os casais que renovarão cada geração. Uma coisa é certa: sem herdeiros do saber nada pode continuar.
         Como tenho argumentado diversas vezes (1985), na aldeia de Pinheiros, as mulheres importam homens para fazer filhos, enquanto os seus irmãos (potenciais maridos de outras), emigram para comprar terra. O ciclo de estabelecimento da propriedade camponesa não teria sentido sem um ciclo doméstico de reprodução humana; e prova é que os grupos de camponeses têm subsistido isoladamente através dos séculos, e que a lei e os factos vão modificando as condições do casamento (quer dizer, da forma oficial de produzir pessoas), para que a produção não fique ameaçada. Na vida real nunca faltam possibilidades de fertilizar e conceber, pelo contrário, o problema de homens e mulheres é como evitar a gravidez para ter apenas prazer. Deste modo, as correlações entre terras e pessoas podem resolver-se de formas distintas na vida real: em Vilatuxe, a paróquia galega que tenho estudado nos últimos anos, legalmente um dos filhos herda dois terços dos bens, mas, de facto, os outros filhos mantêm os seus direitos sobre a casa enquanto procuram outros recursos de trabalho para subsistir e às vezes ajudam os seus irmãos herdeiros do campo. Em Pinheiros,  aldeia que tenho reconstruído regressivamente nos seus últimos trezentos anos, apesar de a herança ser universal, há sempre um filho que fica com todos os bens. Esta é uma forma cultural de restituir o morgadio.
         Creio que a questão é outra, seja o sistema de herança de um tipo ou de outro, o campo como sistema de trabalho está, desde há trezentos anos, na Europa, subordinado ao trabalho industrial, mais ou menos agravado pelos cobradores da renda: patrucios (Galiza), ou morgados (Portugal), Cabezoleiros (Galiza) ou Condes (Portugal). Ora, a subordinação do trabalho à produção de renda deixa sempre todos pobres, ou, pelo menos, sem dinheiro, bem necessário para a produção no capital. Dependentes, em consequência, das batatas e do milho como do próprio sémen e do saber distribuí-lo. «Por que há célibes?», caberia perguntar. Porém, a causalidade é um argumento impossível nas Ciências Sociais. É mais interessante perguntar, como há célibes? A minha resposta é que a reprodução oficial de seres humanos está em relação, tanto com a estrutura de relações do Estado-Nação dentro da qual vive um grupo social, como com a sua situação conjuntural respeitante ao passado e às soluções adoptadas. É este o tema que desejo discutir agora. Antes, contudo, apresentarei os dados das paróquias que estudo e que usarei para o meu argumento; em seguida discutirei as hipóteses interpretativas que me têm ocorrido.

2. O lugar

         Entre 1974 e 1978 estudei as estratégias reprodutivas da paróquia de Vilatuxe, na Galiza, tendo por isso residido mais de um ano na aldeia de Carretera. A partir de 1982 estudei a freguesia de Senhorim, em Portugal, tendo residido entre 1983 e 1985 numa das suas aldeias que tenho denominado de Pinheiros. Para propósitos comparativos apenas serve a diferença na organização do processo de trabalho e tecnologia empregue para fins tão diversos como produzir leite em Vilatuxe e vinho em Pinheiros. Quanto ao resto, nos detalhes das modalidades em matéria de herança, assim como na memória dos santos, são muito distintas. Apesar disso, não pode haver grandes diferenças culturais hoje em dia entre duas paróquias rurais da Europa, cristãs, católicas, luso-galaicas, com organização parental do trabalho, passado senhoril e enfitêutico, etc.. Conjunturalmente, a história regressiva que emprego como método de estudo para analisar a transcrição na reprodução social mostra-me os diferentes aspectos da organização do território como resultado do estabelecimento dos camponeses. Contudo, sob as condições de trabalho multinacionais que a organização industrial da cultura defina, o processo de trabalho incarnado pelos camponeses parece ser similar no estilo, ainda que variem algumas tonalidades na partitura.
         Penso que as variações têm a ver com a capacidade de recursos com que cada aldeia pode contar em momentos ou épocas diferentes da sua história. Quanto ao resto, a teologia, que primeiramente organizou a racionalidade europeia e a teoria económica depois, tem gerado sistemas legislativos orientadores do comportamento, assim como ideias doutrinais (católicas ou laicas), de forma que a população acaba por ter os mesmos comportamentos em locais diversos. As cronologias das revoluções liberais em Espanha e Portugal têm anos de desfasamento entre si, mas os objectivos acabam por ser similares. O mais importante é que o sistema reprodutivo do capital acaba por salvaguardar a forma parental de trabalhar das aldeias camponesas, assim como o saber que orienta o comportamento. Assim tem acontecido em África, na Índia e no Pacífico Sul (América Latina), onde o trabalho como força organizada ficou intacto, tendo-se simplesmente importando o campesinato e o inquilinato. * Em todos estes lugares o trabalho assalariado e a mercadoria foram introduzidos, competindo com a racionalidade parental religiosa que, contudo, sobreviveu em vários níveis de estrutura social.
         Pode-se afirmar que as ideias que individualizam cada pessoa pela lógica do contrato e na perspectiva da igualdade, introduzem um ideário no campo que as pessoas acolhem com desejo de ter terra, a necessidade de controlar as suas condições de vida e a própria racionalidade católica de vida e morte individuais. A compra de terra pelo campesinato é a materialização da lógica contratual e a dinamização da individualidade, dinamização que tem um forte limite. De facto, as condições técnicas do trabalho repousam, até hoje, nos deveres parentais, na vizinhança, na solidariedade do trabalho e na ideia de pecado, de prémio e castigo, no fundo. Encontra-se outra limitação à individualidade configurada na reforma agrária do século XIX ibérico, nas condições técnicas do trabalho, que permitem desenvolver desigualmente os recursos industriais que começam a expandir-se. Seja na extinção dos morgadios ao longo do século XIX (que atingiu a freguesia de Senhorim como o resto do país); e sua transformação em propriedade camponesa após a república em 1911; seja na lei de redenção dos foros do começo do século XX em Vilatuxe (assim como para toda a enfiteuse em Espanha), pode verificar-se que as ideias, a política e conveniência económica do liberalismo – essa ideologia da revolução francesa que laicizou as ideias católicas e aburguesou a administração da nobreza, catapultou os camponeses para o mercado sem intermediários nem dinheiro, e entregou à vida rural toda a responsabilidade económica que a legislação e a acumulação do capital até então previam para os representantes do trabalho camponês – os proprietários industriais e a indústria.
         Assim, o celibato, como parte da reprodução, ocorre numa ou em várias épocas históricas e varia com a definição da relação entre quais pessoas têm quais terras e quem dirige o processo de trabalho na sua organização estrutural: a Igreja ou o Estado. O pai de família apenas dirá para se levantarem às 5 ou às 8 horas para trabalhar, ou decidirá quem e quando deverá abandonar a casa. O que permanece constante ao longo do tempo é o facto de o campo ter um organizador central e externo do trabalho: a religião sistematiza os direitos e deveres; o parentesco define os lugares no processo reprodutivo; a legislação especifica o que a religião deixa em traços largos; o conhecimento gera-se e transmite-se com técnicas orais, e a técnica produtiva do camponês, que dinamiza a solidariedade, serve de memória do processo de trabalho e fornece as linhas de circulação de técnicas não produzidas no campo. Finalmente, a base das trocas de trabalho que suplementa as diferentes capacidades técnicas dá origem à circulação de pessoas e instrumentos.
         Do conjunto, parece-me capital a questão das técnicas para gerir e transmitir o saber. O cuidado que em Vilatuxe e em Pinheiros se tinha em manter e conservar a relação que se tivesse com quem sabe matar porcos, fazer palheiros, consertar arados, melhorar a saúde de vacas e burros ou, enfim, cuidar das tarefas que exigem um conhecimento especial, sempre chamou a minha atenção. Nas festas e refeições, os especialistas sentavam-se ao lado do especialista da cultura letrada; o padre que representa o poder central eclesiástico e estatal sentava-se ao lado do antropólogo de serviço, o escriba da aldeia, um comentador das histórias da sua história. Este cuidado não se manifesta apenas no prestígio ou na dádiva; normalmente havia ao lado uma pessoa mais nova para observar, para repetir os gestos, daquilo que Meyer Fortes (1938) chamara aprendizagem por imitação ( minha tradução). A questão é que, nem em Vilatuxe nem em Pinheiros, se têm sistematizado por escrito os textos, as ideias com que se trabalha e transforma a matéria. Parece óbvio dizer isto, mas por óbvio, nunca escrito. Na memória escrita destas duas freguesias só contava a reprodução humana, com os laços de parentesco oficiais. Os arquivos são o complemento local da lei nacional; assim como, mais recentemente neste século, a escola unifica o saber com base nas hierarquias universais: a família, a prática, a propriedade e a utilidade. O resto do saber, circulava em ambas as paróquias pelo conjunto das pessoas, distribuído por especialistas, como analisei nos meus estudos sobre a ajuda mútua (Iturra, 1978; 1987; 1988).
         A ajuda mútua une os parentes entre si, quer dizer, aquelas pessoas com um interesse material na prosperidade do outro, e com um interesse moral (porque o contrato simbolicamente expresso, mesmo que não se entenda, constrange ao seu cumprimento). É um elemento estruturante das trocas, como já Mauss (1924) nos disse, e eu tenho observado no meu trabalho de campo. Unem, pois, as pessoas parentes entre si, com base nas capacidades que podem desempenhar na tarefa. Os trabalhos de ajuda mútua realizam-se quando o grupo acomete tarefas diferenciadas com todas as suas complexidades. Desta forma, cada grupo doméstico reparte os indivíduos pelos distintos trabalhos de acordo com o que se espera de cada um, de acordo com o seu treino. Assim, dia a dia se vão definindo as aptidões pessoais que, em suma, constituem as capacidades do grupo, o limite das suas forças, o ponto de partida para procurar a ajuda dos outros. Quando recenseei os instrumentos de trabalho e estudei os grupos de entreajuda, pude comprovar que a reunião de mão-de-obra opera em torno de alguém que sabe da totalidade do trabalho, mas que conhece também o que cada participante pode dar de si mesmo para finalizar a tarefa.
         A preservação do saber através da técnica oral é de tal ordem, que o representante da cultura letrada que guarda a memória do povo, o padre, é celibatário. No outro extremo, os seres tidos como mais ignorantes são também celibatários, mas estes têm o encargo social de fazer trabalhadores: as mulheres sem terra, assalariadas por conta de outrém, uma categoria praticamente extinta na actualidade. O conjunto das histórias de vida destes indivíduos e de outros diferentemente posicionados na hierarquia, explicaria o processo geral do celibato na reprodução; contudo, vou primeiro examinar as situações gerais que contextualiza o processo. Apresento, para já, alguns dados para a caracterização do lugar.
         Em Vilatuxe, em 1974, estudei as relações entre as quinhentas e oitenta pessoas que viviam nas catorze aldeias da paróquia, a maior parte proprietária das suas leiras de terra, que não excedam 2 ha ou 3 ha. Os cento e trinta e um grupos domésticos que analisei no presente etnográfico (ainda que tenha retrocedido duzentos anos na história da propriedade e em casos de parceiros e proprietários), podiam classificar-se entre os que não tinham propriedade rural, os que combinavam esta actividade com trabalhos noutros sectores produtivos, os que se dedicavam à agricultura com preponderância para o consumo e os que se haviam especializado na produção de leite. O estudo de duzentos casos de entreajuda mostrou-se como ela se organiza por meio de parentes e especialistas repartidos entre todos os grupos, sendo cada categoria excluente das outras, dado o diferente tipo de especialidade; até ao ponto que as especialidades reformulam o critério do parentesco, de forma que em primeiro lugar está o saber e depois procurar-se ou fabrica-se a ligação entre o grupo de produtores especializados. No caso da agricultura para o uso, com uma divisão do trabalho bem evidente, o critério preponderante é a quantidade de pessoas que faziam uma actividade não diversificada (plantar e não semear, por exemplo).
         Os cento e trinta e um grupos domésticos eram, na sua maioria, antigas famílias foreiras, com apenas quatro casas com um passado de grande propriedade. Do conjunto, cento e sessenta e sete adultos eram casados, enquanto que trinta e seis eram celibatários (quinze homens e vinte mulheres). Entre estes celibatários estão as pessoas que, dado a sua idade, se pensa que não virão a casar-se. Assinalo isto porque estou a referir-me a dois conceitos delimitados pela sua funcionalidade, que definem condutas específicas no processo reprodutivo: casamento e celibato. No campo, as pessoas casam para ter substitutos e produtores que fiquem oficialmente ligados aos bens, o que a lei prevê através de um contrato civil. O celibato, pelo contrário, é parte do processo reprodutivo que produz filiação desvinculada dos bens, como já defini noutro texto (1987), sistema que tem mudado desde que o filho do celibatário pode ser herdeiro, desde que pai e mãe sejam declarados por escrito nos arquivos do Registo Civil, o que é obrigatório em Portugal mesmo quando os filhos são incestuosos. Entre as mulheres celibatárias, oito tinham filhos de proprietários que se haviam casado com proprietárias, sendo todas elas jornaleiras pobres; de todas elas podiam contar-se dez filhos sem pai legal nem reconhecido como pai biológico (eufemismo que define de outra forma o pai social quando não há forma de defini-lo).
         O caso de Pinheiros posso detalhá-lo mais para diferentes épocas, já que elaborei os dados retrospectivamente, com o objectivo de poder comparar a aldeia com a conjuntura da história económica de Portugal, o que não havia pensando para Vilatuxe. Em Pinheiros, em 1983, estudei as relações entre as pessoas das sessenta e oito casas aí existentes e destas com os seus antepassados. Até meados do século XIX, quer dizer, até ao ano em que de momento acaba a minha história da aldeia, as terras estavam vinculadas em morgadio. Os descendentes da família morgada, os seus bisnetos, ainda viviam aí e são os maiores proprietários do conjunto dos grupos domésticos. Deste conjunto, a maior parte cultiva vinha na terra comprada com dinheiro da emigração, alguns trabalham terras de outros como meeiros ou rendeiros, outros vivem simplesmente na aldeia e trabalham fora. Uma aldeia relativamente isolada do resto da paróquia, situada na montanha. tem sido cento e vinte e três grupos domésticos através do tempo, com duzentos homens que tiveram filhos entre 1864 e 1983. Em 1700 havia sete casas, entre 1800 e 1900, vinte e quatro, e hoje as sessenta e oito que mencionei acima. Os cento e vinte e oito grupos domésticos distintos e isoláveis que se têm sucedido na aldeia produziram seiscentos e cinquenta e dois bebés contados pelo registo de nascimento. Entre estas datas houve duzentos e sessenta e nove casamentos e noventa e oito pessoas que nunca se casaram de facto: de trezentas e quarenta e sete pessoas que morreram entre 1862 e 1983, oitenta nunca se casaram (trinta e seis homens e quarenta e quatro mulheres). Os célibes vivos, dez homens e oito mulheres, já ultrapassaram todos a idade em que a funcionalidade reprodutiva manda casar. Do total de mulheres célibes ao longo do período, trinta e seis produziram cento e três bebés. No caso dos homens quais são os seus filhos?
         Nesta paróquia, muito endogâmica nos cento e trinta anos de história que até agora tenho processado, sei que alguns destes pais passaram, em 1862, a ser os padrinhos, o mesmo que, tal como fui informado, se passa hoje. Discuti noutro trabalho (1987) este assunto da figura do padrinho enquanto forma de estabelecer um parentesco ritual que faz parte do parentesco denominado consanguíneo. Porém, o tema não me preocupa agora, pois o padrinho, benfeitor ou truão, é uma figura social acreditada.
         É possível que as crenças camponesas de que o sémen é portador de vida e a propriedade de recursos é portadora de subsistência, faça sempre especular e procurar o pai (o que sugere explorar as ideias sobre a honra). Contudo, nos factos, torna-se absolutamente irrelevante saber quem maculou a honra de uma mulher caso querer vingá-la, como nos conta Garcia Marquez (1985). O mesmo sucede com o pai que não se dá a conhecer: quem poderia, afinal, saber quem é, se o campo íntimo das pessoas não se conhece e pode haver mais homens para além do amante denunciado? O pai poderá existir ou não; se não, existe o padrinho. O que interessa agora é saber como é possível ser-se celibatário em lugares onde as pessoas se casam sem terem terra, pois têm padrinho para os filhos sem pai e casam a filha desonrada.

3. Uma hipótese de interpretação factual

         Ocorrem-me algumas ideias para explicar o processo. É certo que se tenta apagar os rastos de fertilidade numa relação sexual, quando não é conveniente produzir rebentos, assim como é certo que em épocas críticas se procura através de todos os meios aumentar a densidade demográfica. Se a reprodução humana é uma combinação de fertilidade, recursos e saber, a forma mais drástica de fazer circular estes factores é o casamento que, de forma ordenada e gráfica, vai ajustando as pessoas, bens e saberes, subtraindo para a reprodução um certo número de homens e mulheres através da celebração do seu mútuo consentimento. Outro extremo drástico é relacionar a possibilidade de produzir descendência com os recursos, concentrando-os e tornando-os reprodutivos da maneira definida pelo contexto histórico dentro de uma classe ou estilo de vida. Contudo, este argumento seria simplesmente de classe: os que têm casam com os que têm e os que não têm não casam. A segunda parte da afirmação não parece ser verdade porque os que não têm também se casam, como já afirmei outras vezes e isso constitui inclusivamente garantia para ter contrato de parceria, foro ou simplesmente para trabalhar sob a autoridade paterna: todo o dinheiro no mesmo lugar e muitos dos que o têm não casam. Estes têm a possibilidade de gozar uma completa satisfação, permanecendo na casa paterna, emotivamente satisfeitos entre irmãos, especialmente na pequena propriedade em que, apesar da tecnologia ser um factor de solidariedade, o limite da posse desenvolve vínculos dentro dela e contra outros.
         Para o nosso entendimento positivista e cartesiano é duro aceitar que a posse de terra com árvores e cores vivas, vincula as pessoas. É um argumento baseado nos interesses e emoções que é difícil de sustentar. Tudo o que sei é que a família morgada de Pinheiros casou todos os seus filhos e filhas com iguais sociais, tivessem bens ou não. Um deles, por exemplo, casou em 1860 com a mestra local, cujos bens eram as letras e ter ficado grávida. Em Vilatuxe, os filhos e filhas de caseiros casaram sistematicamente com caseiros, os proprietários com proprietários, etc.. Houve, na paróquia galega, um proprietário que teve filhos com a filha do caseiro da sua casa, o qual, na época em que os proprietários eram demandados por causa da terra, defendeu o senhor e casou com ele a filha. A possibilidade de um casamento fora de categoria, como acontece em certos momentos da História, só confirma, a meu ver, a estrita categorização. O facto da totalidade das mulheres celibatárias que tiveram filhos e os criaram (embora à margem da forma oficial, vinculada), não terem bens e que os pais conhecidos sejam todos homens com recursos, mostra que a categoria existe e funciona como uma vantagem para a mulher que não tenha outros bens a não ser a possibilidade de fazer um filho que a possa proteger, como tenho argumentado outras vezes. Por outro lado, qual é o objectivo do casamento dos que não transmitem bens nem conhecimentos? No caso dos proprietários, como estão orientados pela letra da cultura cristã, que os seus irmãos se casem, faz parte do prestígio que às suas posses se acrescenta (é a regra drástica de não arriscar a relação com o poder se o grupo social defende a reprodução não ritual). Para quem já está abaixo, deixar escapar a paixão é um benefício. Quem não sabe nem tem, só pode ter filhos, se é mulher; se é homem, só tem trabalho.
         Por outro lado, não são apenas os factores da paixão que devem ser analisados. Os grupos domésticos produzem filhos para o trabalho, de onde o prazer da cópula é o incentivo que quebra as resistências a não querer ter filhos. Especialmente no século XIX e início do século XX, a morte durante o parto era frequente. O trabalho do campo para a mulher grávida é muito pesado. O cuidado dos filhos diz-lhe respeito, bem como à outras mulheres da sua família e vizinhança, se estão perto e têm tempo. A maternidade é uma acumulação de problemas que são adiados, evitados, espaçados. Tenho observado que, através dos anos em ambas as paróquias, nas famílias camponesas com menos recursos casa um dos filhos e os outros, sendo celibatários, cuidam dos sobrinhos. Na época do foro e arrendamento, o celibato ocorre sobretudo entre as mulheres, a maior parte jornaleiras, sem terra. E entre algumas filhas de proprietários. Creio que na época da propriedade vinculada não havia razão para que os homens se casassem com mulheres desprovidas de recursos ou alguma habilidade. Na época da compra da propriedade, pelos anos cinquenta deste século, em ambas as freguesias, toda a mulher que pudesse ter filhos e soubesse tratar dos negócios correntes do grupo doméstico era uma mulher casadoura. De facto, os grupos que passaram do pagamento da renda à  compra de terras, precisam de uma continuidade no desenvolvimento da propriedade e da habilidade da força de trabalho dos filhos. É certo que vários grupos de irmãos não se casaram porque com o trabalho de todos tinham-na em quantidades suficiente mas também é verdade que os filhos dos seus irmãos casados seriam os seus continuadores. Na época da propriedade vinculada, a habilidade para ter filhos é a mais importante e o senhor cuida da sua fertilidade; na época da propriedade camponesa ter filhos vem depois de saber manipular os negócios. Ter filhos requer condições em cada época, as quais quero  agora analisar, em relação ao que se exige de cada homem e de cada mulher na propriedade vinculada e camponesa: o saber.

4. Saber reproduzir

         Em 1888 morria sem sacramentos J.F., antigo proprietário; em 1901 morria a sua mulher e entre 1882 e 1950, todos os seus filhos que eram celibatários. Amélia, a última a morrer, foi registada como mendiga; os outros morreram também pobres e como jornaleiros. J. F. enlouquecera no percurso da sua vida, e os bens que tinham foram desaparecendo. A família, uma ramificação dos morgados locais, não pôde casar os seus filhos: nem pelo estatuto, nem pelos bens, nem pela razão. A história diz que o filho de um louco, louco pode ser também; e não saber gerir os bens é a maior das loucuras. Seja qual for a causa, negar os sacramentos a uma pessoa significa fechar a porta a tudo o que dá sentido à vida: a eternidade. Ou, pelo menos, pôr em dúvida a possibilidade de eficácia da via sacramental para atingir o outro mundo, porque não há uma razão, um atributo definido pela teologia para ser pessoa a ter capacidade neste e no outro mundo. Sem querer aprofundar ainda este assunto que reservo para o próximo ponto, quero apenas notar agora que, privado da razão, o antigo proprietário morre  como coisa; e que os seus filhos não se casam temendo-se da sua capacidade de discernir, de cuidar dos bens. Noutro caso, as senhoras A.., R. e O. J., de avançada idade, respeitadas pelos vizinhos, que viram emigrar os seus filhos que tiveram sem marido. Como respeitada é também a memória da Sr.ª. J. e da Sr.ª Jo., seja pelos próprios filhos concebidos de diversos homens, seja pela lembrança das pessoas. Que a Sr.ª. J. teve o seu último filho depois de enviuvar é coisa que apenas se conta ao antropólogo e não se comenta entre as pessoas. As duas mulheres têm mais de 80 anos, as outras morreram no começo do século XX com quase 80 anos cada uma. As quatro eram jornaleiras, filhas de jornaleiros, que no seu tempo causaram, nas respectivas casas, o escândalo da gravidez celibatária. Creio que há que deter-se agora em apenas duas questões: uma, a da idade associada à sabedoria, à paz e à calma, o respeito por quem em breve será uma alma e que sabe graças à experiência acumulada, o que cobre com credibilidade actos antes condenáveis de uma pessoa. A segunda questão é a seguinte: se as jornaleiras têm sido classificadas como pessoas para todo o serviço e no último escalão da hierarquia da aldeia camponesa, não deixa por isso de haver um juízo moral.
         Pode afirmar-se que existe um ensino do comportamento transmitido pela via do sagrado e do ritual, como tenho discutido noutros textos, que não produziu efeito na vida destas pessoas. Não souberam cuidar dos seus corpos para a reprodução vinculativa. Não é por serem jornaleiras que têm filhos pela via da reprodução celibatária, ainda que todos os filhos de mulheres celibatárias tenham como mães unicamente jornaleiras. Mas também há as que têm filhos de forma vinculada, seja com outros jornaleiros, seja com proprietários com que casaram. As mulheres que, sem se casarem, têm filhos, acabam por nunca mais se casar: o património dos seus corpos foi delapidado no que se supõe ter sido a loucura do desejo e, como J. F. que não recebeu o sacramento da unção, não há homem que com elas queira anuir pelo sacramento do matrimónio. Saber reproduzir é saber cuidar dos recursos da forma que as ideias médias de convivência social aconselham, sistematizadas, elaboradas, ensinadas e preservadas no saber que cada indivíduo possui.
         É certo que as jornaleiras, numa sociedade hierarquizada como a do campo, permanecem mais expostas a transgredir e os factos assim o indicam. Mas também é certo que se chegam a tornar-se num modelo de virtudes, como no campo se diz frequentemente, a sua reprodução será vinculativa, quer dizer, será através de contratos com descendência e parentesco e com ligação aos bens reconhecidas pelas pessoas, já que então se ajusta ao prescrito pela cultura letrada, pela doutrina, pela lei, pelo poder. A questão não está no juízo moral derivado do conceito de pecado e da ideia segundo a qual casar-se é mais honroso. Ainda que seja assim que a questão se apresenta nos termos do quotidiano, o que estou tentando estabelecer é que a reprodução celibatária está também relacionada com o saber não só de uma técnica que se transmite, como ainda dos recursos básicos com que a matéria é transformada a partir das ideias que se possuem: neste caso a terra e o corpo. A nós antropólogos, que chegámos às aldeias na época em que a celibatária já morreu ou é velha, parece-nos que o bem dizer acerca da senhora nunca permitiu a existência de máculas do seu comportamento. Contudo, para um sistema de trabalho que se baseia no parentesco como forma de distribuir os direitos e as obrigações, a presença da reprodução celibatária é um risco e é evitada nos factos e nos preceitos. Se acabam por ser transgredidos, o castigo final e a não incorporação da mulher no sistema estruturado de trabalho, tanto ela como a sua descendência, existindo outra via – a do parentesco ritual e de facto – para recolher as consequências da fornicação.
         Saber cuidar do património (terra, corpo) não é algo exclusivo dos homens proprietários ou das mulheres jornaleiras. Tenho visto casos de herdeiros ou proprietários que são bruxos, alcoólicos ou com vocação para a promiscuidade, o que impede o seu casamento – e, de facto, qualquer outro tipo de aliança, inclusive a entreajuda. Os homens têm fama de ser bons reprodutores são bastante bem acolhidos pelas raparigas casadoiras, seja pela virilidade que exibem, seja porque há prova de que o seu sémen é boa semente. Creio que para este aspecto Brandes (1980) dá boas pistas ao dizer que entre os camponeses existe a crença de que o sémen dá a vida. Não é apenas um tema relacionado com os Kiriwina (Malinowski, 1927 e 1929) ou os Baruya (Godelier, 1982). Até porque os Don Juan locais só se assemelham ao modelo de Adónis pelo tributo de abundante secreção que os conduz à paternidade múltipla, facto que acaba por torná-los atraentes aos olhos do grupo local que precisa manter um fluxo permanente de descendentes.
         Porém, o saber reproduzir é, evidentemente, contextualizado, não só ligado ao sexo como também à época de que se fala. Já discuti acima as condições que observei em Vilatuxe para ser herdeiro: outrora, saber do trabalho da terra; hoje, saber da especialidade que a terra produz e de aritmética para entender as contas do banco, a Nestlé (Vilatuxe) ou a cooperativa de vinhos (Pinheiros). Há um terceiro saber que se junta ao de cuidar do património, terra e corpo, constituído pelas ideias com que se trabalha. Este terreno é delicado por dois motivos: um, porque enquanto antropólogos rurais queremos para não aparecer idealistas, e neste domínio é difícil; outro, porque as aldeias que estudamos em Portugal e Espanha são diferentes das aldeias suíças, francesas do Norte e do Sul, italianas e até das da polónia e Hungria, no sentido em que em todas elas, e não só nas inglesas, existe uma organização mais estabelecida do trabalho (pessoas, terra, tecnologia, conhecimento). Em Vilatuxe, como em Pinheiros, deparamo-nos com camponeses que trabalham à antiga, isto é, como quando eram eles próprios meeiros ou enfiteutas; ou então, fazem-no da forma como conseguem, visto não terem recuperado ainda o raciocínio da propriedade por falta do bem reprodutivo central, o dinheiro, que no seu sistema é lentamente entregue em preço e em salário (dos produtos, da emigração). Por outro lado, estes trabalhadores à antiga são pessoas, cujo conhecimento técnico se tem desenvolvido activamente positivamente, com base num conjunto de ideias acerca de como produzir bens. Estas ideias não se aprendem quando adulto. É possível ver que o saber é uma orientação difícil de substituir na lenta marcha das mudanças; a maquinaria que tenho visto trabalhar nos campos é sempre introduzida ou pelos filhos dos camponeses, ou pelos que tiveram treino mais perto do mundo da indústria (assunto que discuto em detalhe noutro texto, 1987).
         A tecnologia é um conjunto de ideias que se inscreve nas ferramentas que há que saber ler para movimentá-las, fazê-las outra vez e repará-las. Estas ideias têm uma dimensão simbólica pautada por ciclos litúrgicos e de santos, onde o saber se confunde com o crer e onde estas lógicas não se experimentam mas sim repetem-se. Com elas, existem os trabalhadores desenvolvidos, como são chamados os que têm experiência. A conformidade cede em benefício dos que possuem experiência, cujo trabalho é mais rápido, seguro e eficaz. Estes heróis conseguem mais mulheres do que aqueles que vão ficando para trás. A reprodução tem uma técnica que se aprecia antes de se querer ter filhos com um homem ou uma mulher de forma vinculativa, e essa técnica não vem nos manuais. Os  celibatários do presente, que encontrei vivos durante o meu trabalho de campo em Vilatuxe e em Pinheiros, pertenciam quase todos a esta última categoria, e também muitas mulheres, apesar de neste caso intervirem outros factores. Por vezes são os seus próprios irmãos, já que o casamento com um grupo familiar que trabalha principalmente para o uso traz para casa tipo de tecnologia antiga (sejam terras, a criação dos filhos ou o que se espera da comunicação entre as pessoas). E, apesar de restar sempre a alternativa de cortar os laços familiares, usada numa pragmática nova forma de classificar o parentesco, o elemento propriedade surge como vinculativo, aproximando, definindo quem deve trabalhar em conjunto. Essa classificação de que tenho falado noutros textos (1987 e 1988) contém o limite da base material para a qual foi criada: sem funcionalidade, não serve. Neste caso existem duas possibilidades: reclassificar pessoas na estrutura de relações porque transportam consigo um saber próprio, artesanal, que é necessário em diversos lugares (como reparar, curar, compor, semear, temperar, remendar, possuir); ou então tornar-se proprietário absoluto das condições de trabalho de solidariedade parental.
         Tenho observado uma tendência para o casamento entre pessoas com saber igual e um isolamento dos saberes diferentes, que se reflecte na estrutura do celibato, da mesma forma que o celibato (especialmente o reprodutivo), reflecte a estrutura social com base na propriedade dos recursos produtivos. Porém, esta observação provém de um facto que pode controverter-se em situações de transformação das formas de trabalho e de coexistência de formas reprodutivas, pois tenho visto como homens e mulheres se casam noutras tecnologias e poucos voltam às suas casas ou ajudam nas tarefas que antigamente eram comuns, a menos que existam interesses produtivos ligados. Contudo, nestes casos, tenho visto também como os produtores com técnicas mais modernas cortam laços resolvendo as questões patrimoniais em vida (tipicamente o que acontece nas reformas de concentração de parcelas, ou da colonização em Espanha, ou dos arranjos patrimoniais privados em Portugal), enquanto que os que possuem técnicas mais antigas, com a calma que o seu tempo permite e dada a necessidade de obter ajuda da técnica mais avançada, tornam-se clientela dos modernos, como tendo descrito nos meus textos sobre a entreajuda (1978; 1988). Ninguém se quer casar com pastores de ovelhas, mesmo que sejam considerados muito ricos, porque é um trabalho que arrebata da vida quotidiana, do ritmo dos outros. Nem ninguém se quer casar com homens que, sendo pobres, nunca quiseram sair da aldeia. As mulheres preferem os operários industriais, profissão à qual vários jovens de Vilatuxe e Pinheiros se converteram: possuem parte de, ou estão em contacto com o bem reprodutivo principal. Há que dizer que os homens procuram obter esse tipo de trabalho; ou melhor, industrializam a produção rural, o que só se torna possível ao suplementar com  emigração sucessiva e a realização de outros trabalhos (preços agrícolas não pagam o tipo de industrialização que se faz nas pequenas propriedades precárias, sem capital).
         Isto leva-me ao último aspecto do saber reprodutivo, a emigração. Sair e voltar à aldeia criou outro tipo de razões para o celibato: pode observar-se na estrutura do celibato um bom número de emigrantes. Como também, é claro, na estrutura do casamento. Há, contudo, uma diferença: alguns emigrantes não são celibatários porque casaram antes de sair (parta a mulher com eles ou não), ou porque pactuaram um casamento após ter sido já pactuada a troca de alguns bens entre o noivo e a noiva. Entre os casados que partiram sozinhos e os que partiram com a mulher há também diferenças nas suas formas de trabalho, de que falarei noutro momento. A emigração do celibatário coloca-o em lugares onde é definido como trabalhador residente temporariamente, que não entende nem aceitas as formas culturais aí existentes. Às vezes, há grupos de compatriotas co-residentes. No regresso, o emigrante fala outra linguagem, não consegue facilmente uma mulher ou, como surge frequentemente nas histórias de vida, não aceita com facilidade uma mulher da aldeia. E as de fora não querem ir para lá trabalhar. Tudo parece passar-se como se a circulação do camponês pela indústria estrangeira ou pelas cidades do seu país, fosse dando conta das duras condições que terra e parentesco significam enquanto objectos de trabalho e meios de convivência. Creio que neste ponto do saber reproduzir há que salientar que o património que se reproduz constitui o elemento central da decisão sobre quem virá a ser dotado para que oficialmente procrie. Terá relações vinculativas quem saiba manipular conforme as ideias médias da sua época que, da mesma forma que as tecnologias e a emigração, variam mais rapidamente que os estereótipos que as pessoas movimentam para decidir quem casa e quem não casa, e que os textos que informam tais decisões. A estes últimos quero referir-me de seguida, pois penso que são parte daquilo que influi no processo reprodutivo que também acaba no celibato.
 5. Uma hipótese de interpretação contextualizada.
          As temáticas parecem complexas no campo da reprodução, onde vive o celibato. A Igreja e o Estado, em conjunto, com maior preponderância de um ou de outro, em épocas diversas da sua história, sistematizaram cuidadosamente a forma de conduzi-las, na doutrina e na lei. Como beneficiários, de formas distintas, do produto do trabalho e da experiência humana sobre o mundo acumulada no tempo, Igreja, nobreza e Estado preocuparam-se em detalhe pelas técnicas da cultura letrada, para orientar a reprodução. Seja no direito germânico preponderante, usado nas áreas que tenho estudado até ao século XX e que inspirou o Direito Canónico de hoje, bem como no Direito Romano usado desde que Napoleão introduziu, em 1867, um Código Civil escrito na base das ideias da Enciclopédia e da Revolução Francesa, submetem a construção das relações parentais a normas estritas inapeláveis e aos sistemas do contrato. No final, penso, a experiência de conhecimento pragmático da vida quotidiana passou a um campo arquétipo de leis que acabam por reflectir a realidade porque a impõem e porque prevêem excepções a si mesmas quando uma nova realidade surge. Tratei mais exactamente da orientação do casamento através da lei e da teologia noutro artigo (1987); igualmente, abordei noutro lugar como a taxinomia dada pela doutrina dessa forma fixada nas ideias, existe para classificar homens e mulheres consoante possam ou não gerar reprodução vincular. Quero, agora, examinar o conceito de razão que informa o tecido das relações de parentesco e, por fim, de trabalho.
         A Summa Theologica (1267-1273), derivada da tradição aristotélica, preocupa-se pelo conceito e Tomás de Aquino sistematiza as qualidades e as idades do que os indivíduos podem fazer em relação às pessoas, às coisas e à divindade (a garantia do contrato, como gosto de dizer).  A classificação foi recolhida pelo Código de Direito Canónico de 1917 e laicizada antes pelo Código Civil de 1867. Ambos fazem uso de uma via ritual diferente para estabelecer as sucessivas autoridades e emancipações das pessoas e seus bens: dos 0 aos 7 anos classificam-se os infantes, de 14 a 16 (homens e mulheres), os púberes, a partir dos 21, os adultos (idade variável na legislação dos últimos anos). A lei canónica e a civil preocupam-se  em detalhe, de forma casuística diria eu, da capacidade que as pessoas têm para ser responsáveis pelos seus actos e para administrar os seus bens e, eventualmente, os dos outros. Até há relativamente pouco tempo, as mulheres, ainda que tivessem idade adulta, perdiam a capacidade para administrar, casando-se, ficando ambos os patrimónios apenas nas mãos da autoridade marital.
         Quando a lei que regula a vida social (gerando inclusivamente as autoridades letradas que podem aceitar contratos matrimoniais, tutorias, curadorias, etc.), se preocupa pela razão, interessa-se por dois tipos de capacidades: primeira, a de procriar, segundo, a de administrar e acrescentar os bens reprodutivos: a terra e o conhecimento. Quer dizer, a Igreja e o Estado têm-se preocupado em cuidar a inteligência e a memória, a capacidade de lembrança, que é a capacidade de aprender, de saber e, portanto, de compreender e, assim, trabalhar e transmitir. Quando na vida quotidiana o herdeiro é escolhido de entre os filhos que têm mais capacidade para o trabalho agrícola, seja porque é o melhor de entre vários, seja porque in absentia dos outros aquele que fica passa a ser o melhor e por isso fica. O que os pais fazem é reconhecer a maior capacidade de raciocínio entre várias, e instituem esse reconhecimento casando-a em casa, quer dizer, dando-lhe uma mulher (ou um homem) e património; o que os pais fazem é avaliar uma capacidade e dotá-la. É evidente que a capacidade é conjuntural, pois as formas de trabalho mudam com o tempo; e as capacidades variam com as técnicas usadas. Porém, existe uma capacidade absoluta ou não, que é a de estar dotado de razão; uma segunda é compreender e saber qual é o objectivo do matrimónio e como chegar ao coito e conduzir a educação dos filhos; uma terceira é cuidar, alimentar e prover material e moralmente a prole; uma quarta , básica, engendrar, e uma quinta, radical, ter ou não um património e habilidade de trabalho. Assim, estão proibidos de casar os privados de razão, os que não compreendem os objectivos do matrimónio, os imoralmente capacitados, os vagabundos (antigamente, através de leis especiais, também os pobres), e os impotentes para fertilizar (prova só possível ex-post-facto). Estes elementos têm sido recolhidos e feitos lei pela autoridade letrada e com tal autoridade têm sido devolvidos ao povo. Pode perguntar-se como Flandrin (1976) até onde estão os camponeses preparados para aceitar (ou, diria eu, para saber), para respeitar tudo isto. É uma resposta do campo histórico muito difícil de argumentar com os dados que estou a usar e no espaço que tenho, porém há uma forma, diria eu metodológica, de aproximar-se.
         Se, como pensam os antropólogos, Deus não existe e é uma expressão simbólica assumida como verdade pelas pessoas que estudamos, mas não incarnada nem materializada em nada visível, então nenhuma das prescrições que em nome de Deus se ordenam (ou da sua versão laica europeia, a razão), tem outra fonte que não seja a prática histórica, a experiência das pessoas. Neste caso, existe um segundo passo no argumento: a experiência das pessoas no plano produtivo e reprodutivo fiz que só sabendo (com a inteligência e com o corpo em caso de doença), pode continuar, para uns, a possibilidade de trabalhar (fazendo filhos, transformando a matéria); e para os outros, a de não trabalhar mais do que na sistematização da experiência dos demais na sua relação com o processo de trabalho e a tecnologia, no seu papel de recolher e anotar a prática destes processos. Aqui entra a terceira parte do argumento: a experiência criada através do tempo e acumulada nas leis, primeiro existe entre os próprios indivíduos que a criam, pelo que a conveniência de dotar alguém com bens e cônjuge é uma decisão presente no conhecimento dos outros; sejam os padres, os potenciais cônjuges, etc., incluindo o celibatário potencial que, avaliando as suas possibilidades, decide ficar só, ou, pelo menos, não casar.
         O saber reproduzir que esbocei no ponto anterior, é, provavelmente, o melhor aferidor das possibilidades de casar que uma pessoa tem, seja com alguém da sua aldeia, seja importando alguém; este é o melhor indicador que podemos analisar quando queremos saber como acontece o processo reprodutivo, seja no casamento, seja no celibato. Além disso, suprime dois vícios argumentativos: o primeiro, o de que património em terra e matrimónio são equivalentes. Eu diria que, tanto para os herdeiros únicos de terras como para os de herança divisível, o casamento é necessário para poder fundar o ciclo de trabalho doméstico que caracteriza tudo o que não é industrial, embora não explique todas as opções, tal como não o fazem o celibato, que existe sempre mesmo não sendo percentualmente maioritário, nem o casamento dos deserdados do sistema, nem a reprodução fora do casamento com dotação de bens e de uma parentela estabelecida, ritualmente através do baptismo, e não pelo ritual do matrimónio. Neste ponto há que recordar que qualquer parentesco é estabelecido socialmente, até o consanguíneo, como se pode verificar na via sacramental de iniciar o parentesco, ou nos filhos adúlteros e incestuosos que acabam com todas as classificações ao manter relações sexuais com alguns dos seus parentes mais proibidos. Esta ideia de adequação património-matrimónio também não explica a mutável situação histórica do campesinato europeu em relação aos contratos de posse ou propriedade da terra. O argumento do saber reprodutivo retira um segundo vício que me parece existir no nosso trabalho quando se explicam os processos das relações sociais: o teísta. Parece-me que, por vezes, o antropólogo não recorda que a existência de Deus é uma questão debatida nos argumentos de tipo teológico, e que a ciência social da nossa época tende a argumentar segundo a via positivista. Com a crença, a religião popular, a não consideração da experiência humana na criação cultural, deixamos caminho para o argumento de que alguma dignidade é a autora das normas e prescrições da cultura letrada. Temo que não saímos do nosso próprio sistema cultural ao não considerar a estruturação do comportamento como resultado de uma lógica pragmática derivada das crenças existentes num criador não humano de uma certa ordem. Digo isto apenas para enfatizar que a crença é somente o ponto de partida do que temos de explicar e não o ponto de chegada que se narra; e, por fim, a aceitação ou a recusa de um indivíduo para o casamento ou para  celibato é resultado daquilo que o grupo social sabe acerca de para que serve cada um dos seus membros, garantindo que o decidido está certo por achar-se sancionado pela palavra de fora, em nome de um argumento irrefutável, porque irracional: a existência de uma autoridade divina, que depois se laiciza no Estado que continua com a característica da divindade, a despersonalização alcançada burocraticamente. Isto conduz ao último passo do argumento: seja a Igreja-nobreza, seja o Estado ou a Igreja, todos têm mantido uma atitude quase militar na sua relação com o povo; os representantes do saber letrado, cujo conhecimento é certo e fixo e pode ser demonstrado através da grafia e argumentado hermeneuticamente, chegam a todos os recantos das aldeias sob a forma de jurisdições. Aí, esteja o camponês preparado ou não para aceitar ou para saber, o representante do saber condena ao casamento ou ao celibato as pessoas. Não obstante, diria eu, isto tem êxito na medida em que coincide com as próprias estratégias camponesas, de pessoas que sabem reproduzir, para obter terra por contrato, seja de enfiteuse, parceria, arrendamento ou propriedade.
         Este argumento contextual é apenas um percurso indicativo pelas possibilidades que podem influir na criação do celibato. Tenho argumentado que existe uma coincidência quanto aos critérios que o saber oral contém no respeitante a quem e o quê é reproduzido, os quais são vigiados de perto pelo saber letrado que tem uma jurisdição sistematizada na lei e na doutrina, garantida pela divindade. Será então que a efectividade, a paixão, o desejo, o amor não têm importância? Quais são as histórias de celibatários que me o permitem afirmar? Advirto, antes de passar a alguns dados, que a etnografia só interessa aqui enquanto resultado de um tema mais preocupante que é o do governo social do conhecimento.

 6. A reprodução e os sujeitos

          Até agora tenho argumentado que o celibato faz parte do sistema reprodutivo, enquanto processo de orientação de um saber que vive no conjunto do grupo na medida em que é memorizado pelos indivíduos de forma diferente. O celibatário possui um conhecimento que o obriga ou lhe permite estar desvinculado da reprodução vinculativa, o que é identificado e socialmente reconhecido pelo grupo, sendo por isso recolhido pela lei e pela doutrina, a morada da cultura letrada. Sobre os tipos possíveis de conhecimento, argumentei nos pontos anteriores, e espero desenvolvê-lo mais detalhadamente noutra ocasião. Aqui, quero argumentar com casos e especialmente com o conhecimento social, que me parece ser a fonte principal dos processos reprodutivos e por fim da criação de celibatário. Os meus celibatários do passado estão arquivados sob as epígrafes de mãe solteira ou mau administrador – dilapidadores potenciais ou de facto de terra e corpo – ou insuficientes na dinamização das suas possibilidades. Os celibatários, que estudo no presente, podem falar deles próprios e das suas condições e, com a lista na mão, vou tentá-lo. Os dezoito que hoje vivem em Pinheiros (oito mulheres e dez homens), têm um número heterogéneo de condições que os caracterizam. Talvez seja melhor afirmar que estão colocados em diferentes momentos do ciclo de fixação do campesinato aos recursos produtivos. Também é possível dizer que, no processo reprodutivo da aldeia, estão inseridos em circunstâncias e condições diferentes. A maior parte deles são proprietários de terra que compraram e dos instrumentos que utilizam; há os que emigraram e os que não; as mulheres nunca partiram para outros países, nem para nenhum outro local do mundo a não ser a própria aldeia. Um deles não tem outra condição para além de ser idiota desde o nascimento. Do conjunto, dois homens tiveram filhos (cujos padrinhos são os seus irmãos), e duas mulheres também. Estas condições comuns ordenam-se de forma diferente quando se olha para as particularidades de cada indivíduo.
         Os homens emigrantes mais velhos, que hoje têm mais de 50 anos e são irmãos, estiveram na América Latina durante mais de quinze anos. Eram filhos de um parceiro local e membros de uma família de oito irmãos: quatro deles estavam casados quando ambos emigraram, enquanto que duas irmãs mais velhas do que eles não estavam. Estes quatro, até à idade entre 20 e 30 anos, constituíam o grupo de trabalho dos seus pais meeiros. Os seus irmãos mais velhos, que também foram trabalhadores dos seus pais durante um momento do ciclo doméstico, forma-se casando com filhas de proprietários locais, aos quais substituíram na idade avançada e na morte, acrescentando essas propriedades com o dinheiro da sua emigração. Os dois irmãos compraram terra enquanto estavam emigrados, que as suas irmãs iam trabalhando com os pais velhos, até à morte destes. Diferentemente dos seus irmãos que obtiveram propriedades através do casamento, os emigrantes conseguiram-no através de um outro tipo de contrato, a compra. As suas irmãs, entretanto, acediam à mesma terra por meio do parentesco e as presumíveis prestações hereditárias que segundo a lei operam entre irmãos sem sucessores (ainda que é possível que o segundo motivo não fosse de todo o explícito para ninguém; o primeiro, ao invés era claro para todos). Em conjunto, os quatro irmãos estabeleceram-se com terras, enquanto deixaram de ser celibatários; as irmãs não podiam trazer nem filhos para as terras dos irmãos, pois isto não era condição para a sua aquisição, uma vez que os outros irmãos casados haviam já tido filhos que os quatro celibatários foram apadrinhando, e que serão os seus sucessores no saber e no trabalho reprodutivo. As irmãs, além disso, como contam as pessoas da época em que eram jovens e como eu vi nos seus 60 anos de hoje, estiveram sempre ocupadas, descuidadas e desgrenhadas, sem graça nem para usar sapatos nem para sorrir, exaustas do trabalho. Com o passar dos anos e com o regresso dos seus irmãos, o grupo doméstico passou a ser uma unidade que come em casa dos pais falecidos há anos; as irmãs dormem nesta casa, e os irmãos numa outra afastada; e andam todo o dia de corpo curvado na terra. No conjunto, as suas necessidades reprodutivas estão asseguradas dentro das condições de trabalho que conheceram ao longo da vida, duras, e, pelo menos agora, não subordinadas a ninguém: nem pais nem patrões. Os irmãos, durante a emigração e hoje em dia quando há feira na cidade, habituam-se a ter relações sexuais com  prostitutas; as irmãs e as suas emoções são um mistério para mim, e são pouco importantes para o povo. Andam curvadas sobre uma terra comprada nos anos em que a casa grande local vendia os extremos da propriedade, os lugares menos irrigados, quando se começou a formar o mercado interno de terras e ainda não se discutiam muito as condições; o peso do trabalho concentrou a sua vida em faze-la produzir, a sua única fertilidade pessoal, se é que algum dia pensaram nisso. O seu grupo de trabalho para as tarefas pesadas é a família extensa, os seus sobrinhos.
         Os outros irmãos celibatários, que têm mais de 60 anos, constituem um outro caso diferente: um irmão com um defeito no pé que o faz andar apoiado num cajado e as suas duas irmãs. Vivem os três em casa dos pais, situada em frente da irmã que se casou com um homem que não tinha terras. Os quatro irmãos herdaram a propriedade dos seus pais e tios, nunca emigraram e os filhos do seu  irmão casado, em conjunto com os de outro irmão casado que é pastor, um grupo de trabalho suficiente. Os dois tipos de grupos celibatários de condições diferentes, pertencem a um tipo de agricultura que é provável que desapareça, mas que, enquanto dura, representa o peso do mundo sobre os ombros dos indivíduos, injectando na memória desde há mil anos. Na transição, que em Pinheiros se começou a operar a partir dos anos 50, quando todos este irmãos eram jovens entre os 18 e 25 anos, já existiam as alternativas de trabalho fora ou dentro da agricultura. Nenhuma propriedade que não estivesse acompanhada de uma vantagem em condições de vida, era suficientemente atractiva para motivar o matrimónio. A própria qualidade dos membros casados da aldeia o diz: os que aí estão eram antes, eles ou os seus pais, meeiros ou jornaleiros, enquanto que os filhos dos proprietários são médicos, professores, de carreira bancária ou eclesiástica.
Existe ainda um terceiro grupo de celibatários: são quatro irmãos que têm outros cinco casados e com filhos na aldeia, que exibem características diferentes. São filhos de um matrimónio de jornaleiros de grande fertilidade. Os quatro emigraram nos últimos tempos, quando os preços de venda da uva à cooperativa vinícola eram mais baixos e uma antiga casa proprietária vendeu as terras de menor qualidade. Os irmãos, abertos os mercados europeus de trabalho, trabalharam e trabalham em países industrializados, adquiriram maquinaria para lavrar as terras e mantêm hoje essa actividade agrícola, subvencionada com o dinheiro da emigração. Não voltariam à aldeia, treinados como estão em trabalhos que exigem esforço corporal, mas a política monetária de Freedman ou de Chicago tem tido um efeito pragmático nas suas vidas, sentido na instabilidade dos seus postos de trabalho; por isso investem em terras que os seus irmãos casados e com filhos (seus sucessores) trabalham. Um desses irmãos é pai de um filho de uma das mulheres celibatárias, e o seu irmão e irmã são os padrinhos da criança. Um quarto e último caso de celibato é o de um homem, filho de mãe solteira e pai de uma criança, que não reconheceu como sua; depois de emigrar trabalhou com os seus tractores as terras da sua mãe e as suas que comprou; não voltou a partir, nem fala muito com os vizinhos. À mulher, mãe do seu filho, deu um considerável pedaço de terra, enquanto se assegura que o filho é seu e não de outro, já que a existência de outros três filhos de pais diversos lhe dera azo a dúvidas. Este conjunto de celibatários faz-me pensar que as diferentes formas da sua inserção no saber reprodutivo, a segurança da sua produção através da família, maquinaria e um filho a confirmar, podem ser os elementos que exigem o celibato em conjunto com o matrimónio, pelo menos nestes casos. Existe, portanto, uma variação de condições no tempo, e isso constitui o elemento principal a ter em conta: a heterogeneidade das condições do fenómeno em relação a uma constante, que é assegurar a segurança da reprodução pessoal.
 7. Conclusão
          Não queria repetir tudo o que disse até aqui, em forma de síntese. Pensei falar nas emoções dos celibatários mas não me atrevi. Isto, por uma razão, faz parte da análise: como entender os sentimentos de pessoas cuja lógica se desenvolve a partir de uma prática de trabalho tão diferente da minha, individual e cartesiana? Debrucei-me, e muito, sobre a mente que avalia todas as suas condições reprodutivas, calcula e decide, através do pensamento que se reparte por um sistema onde a sociedade parental e religiosa substituem as ideias da família nuclear para todas as coisas. Creio que as situações conjunturais dos camponeses da Vilatuxe e Pinheiros, pelo menos, permitem dizer que na sua variabilidade os indivíduos não contam; contam, sim, os grupos que repartem tarefas e continuam a vida. Parece-me que a situação diferencial de cada membro de uma estrutura parental é estrategicamente importante na aquisição de recursos por parte do grupo num processo de trabalho. Entre os camponeses, esse grupo que tanto tem variado na sua composição e nas condições de subsistência desde a Revolução Francesa, continuam a não largar o burro e o arado para trabalhar. Por vezes parece que se industrializam, depois voltam a trabalhar a terra.
         Não há dúvida que no mundo da lógica da maximização, o trabalho camponês debate-se numa revolução liberal para ele inacabada, por vezes procurando dinheiro, por vezes semeando batatas. Creio que a oscilação para o segundo é mais recorrente. É este facto que, no sistema de acumulação do capital mantém como consequência a manipulação de recursos e a venda cara, que de outra forma libertaria o trabalho do camponês da sua condição parental e religiosa, juntamente com o facto de pagar pouco pelos produtos, sejam homens sejam bens.  Enquanto esta situação se mantiver, manter-se-ão também os elementos ideais e os seus contextos legais e de produtividade do saber reprodutivo, que distribui cuidadosamente os recursos. Revendo este factores, estudando a aldeia e a sua situação ou contexto historico-económico, creio que podemos explicar o processo que conduz, uns ao casamento, e outros ao celibato. É com este capítulo  das minhas observações que encerro este capítulo, que foi um passeio pelos factores que distribuem pessoas, bens e saberes, na fabricação do bem máximo de qualquer processo produtivo: o produto. O intermediário ou charneira entre as ideias do seu grupo social, nas quais é treinado, quer as aprenda com proveito ou não para ser dotado de bens para trabalhar (cônjuges e terra), e a matéria que com o seu saber transformará.

BIBLIOGRAFIA

Para escrever este texto tive presente as seguintes obras:
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MAUSS, Marcel, 1924: “L’essai sur de don”, in Annéé Sociologique, Nouvelle Série, vol. I, Félix Alcan, Paris.
MEDICK, Hans e SABEAN, David, 1984: Interest and Emotion. Essays on the study of family and kinship, C. U. P./M. S. H., Paris.
O’NEILL, Brian, 1987: Social inequality in a Portuguese hamlet: late marriage and bastardy, 1870-1978, Cambridge, Cambridge University Press.
SAMUELSSON, Kurt, 1957: Religion and economic action, Health and Co, London.
SCHWARTZ, Bernard (ed.) 1956: The Code Napoleon and the common-law, New York University Press. New York.
TAWNEY, Richard, 1959: Religion and the rise of capitalism, Harcout Brace Jovanicich, London.
TIERNEY, Brian, 1979: Church. Law and Constitutional Thought in the Middle Ages, Variorum Reprints, London.
TOMÁS DE AQUINO, (1269-1772) 1934, Selected Writings, Dent. M. C. D’Arcy, Everyman’s Library.
VERNIER, Bernard, 1984: “Patting bin and bin ship to good use: the circulation of goods, labour and names in Karpathos (Green)”, in Medick e Sabean (org.) Interest e Emotions, C.U P./ M.S.H., Paris, 43 págs.
De entre os meus trabalhos, os seguintes são o antecedente do presente texto:
1977: “Strategies of Social Recruitment: a case of mutual help in rural Galicia”, in M. Stuchlik (ed.) The Queen’s University Papers in Social Anthropology, vol. 2: Goals and Behavior, págs. 75-95.
1980: “Strategies in the domestic organization of production in Rural Galice” in Cambridge Anthropology, vol. 6 nºs. 1-2 págs. 88-129, Cambridge U. K.
1985: “Marriage. Ritual and Profit: the production of producers in a Portuguese village (1862-1983)”, in Social Compass. Revue International de Sociologie de la Religion, XXXIII, Université Catholique de Louvain-la-Neuve, págs. 73-92, Lovain la Neuve.
(1986)-a: “Religious practices in Portugal” in Facts and figures about rural Portugal. Sociedad Portuguesa de Estudes Rural, págs. 137-152, Lisboa.
1986-b: “Cultura oral e cultura escrita: uma avaliação”, in O estudo da História, nº. 2, Lisboa.
1987 – a : “Strategies de reprodution. Le droit canon et le marriage dans un village portugais”, in Droit et Societé. Revue international de théorie du droit et de sociologie juridique, nº 5, págs. 7-22.
1987–b: “La reproduction hors marriage”, in Etudes Rurales, Dec., Paris.
1987-c: “Continuité et change: la transition entre les paysan de la Galice”, in Revue Internationale des Scienes Sociales, Novembre, Unesco, Paris.
Documentos e publicações oficiais:
Arquivo Paroquial, 1911-1983 – Róis dos Confessados e Status Animarum. Senhorim Portugal.
Registo Paroquial, 1862-1983 – Livros de baptismos, casamentos e óbitos. Nelas, Portugal.
Registo Paroquial, 1750-1974 – “Libros de bautizmos, casamientos e defunciones: Vilatuxe”, Galicia, España.
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* Publicado in Comas, Dolores y González, Aurora, Familia y relaciones sociales. Estudios desde la Antropologia Social, Instituto Valencia de la Dona, Generalitat Valenciana, 1990. (Tradução do castelhano por Filipe Reis).
* Inquilinato: sistema de trabalho no qual um proprietário latifundiário cede um pedaço de terra a um grupo doméstico, recebendo em troca o trabalho do chefe de família nas suas terras. É o sistemas de trabalho da hacienda latino-americana.