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segunda-feira, 25 de julho de 2011

Economia e religião nas culturas letradas: o pecado como conceito da reprodução social

1. O Problema

          Todos os povos idealizam as formas segundo as quais os bens serão produzidos, distribuídos e consumidos. Se esta actividade está ou não dividida em estruturas e instâncias, e qual delas assume precedência por sobre as restantes, é um problema do investigador, cuja técnica de conhecimento contém os limites do seu saber. Pode-se dizer que, para as pessoas que trabalham, o conhecimento daquilo
MOSTEIRO ALCOBAÇA
que fazem, como, quando, quanto e com quem passa por avaliações e decisões que dependem também do seu próprio entendimento do mundo. Assim sendo, penso que existe apenas uma forma de abordar este processo, definindo os conceitos que usamos para escutá-lo: se é certo que todos os povos produzem, não é menos certo que todos sabem como o fazer. É neste conjunto que temos de introduzir a dimensão temporal para entender como se combinam as ideias e as actividades. Ao longo do tempo, o conceito de economia tem variado desde o conjunto doméstico que trabalha, dividindo as actividades segundo as formas de classificar pessoas dos gregos clássicos, até à teoria independente que se pronuncia sobre as qualidades das coisas, teorizando e estudando a sua acumulação, cujo controlo passa a classificar as pessoas.
         Ao longo dos séculos, as formas de combinar coisas, pessoas, ideias e tecnologias têm sido definidas  pela  participação de  uma vontade  divina arbitrária na criação da sociedade, incarnada aos seus ministros e em preceitos.
Pode dizer-se, que a vontade divina, sendo criação do homem, já que só tem existência na medida em que é usada no cálculo reprodutivo, incarnando-se nele, ou melhor, materializando-se nele, é o conceito à volta do qual os povos constróem a explicação de si próprios e aferem as relações entre os membros individuais. Esta é a forma chamada religiosa de entender as relações sociais, definindo o trabalho de forma directa e precisa, que se pronuncia sobre as modalidades de pagamento de preços e salários. Não se pode dizer que a economia tenha permanecido dentro da religião, porque a religião é outra forma de pensar o valor das coisas; é, contudo, a forma que serve de base imediata à criação da economia como modo de teorizar que calcula pela utilidade marginal que os homens podem criar quando têm bens acumulados com vista ao lucro. A divisão taxativa entre ambas as formas de teorizar-se deve-se, por um lado, à divisão entre ciência e teologia com que os intelectuais entendem o mundo, enquanto que, por outro, se deve à ignorância que a cultura letrada, enquanto forma dominante de pensar a partir da causalidade, atribui aos que não sabem economia. Estes, usam o saber subordinado da religião.
 2. A religião
          Existem mil e uma formas de definir este conceito, e outras tantas formas haverá também de entendê-lo e pronunciar-se acerca dele. Entendo por religião o conjunto de abstracções em ideias, rituais e entidades espirituais que os homens elaboram a partir da sua experiência histórica: a teorização do acontecer histórico.
         No meu pensamento está presente o facto de que, enquanto seres humanos, pronunciamo-nos acerca dos nossos factos e definimo-los porque é essa a forma de os entendermos, colocando os limites. Acabamos por definir da mesma forma, aquilo que serve como o que não serve: sistematizamos os abusos do corpo e sistematizamos as virtudes da alma. A alma passa a ser assim, uma síntese do que as pessoas devem fazer, é a memória individual no meio do colectivo. O homem da mulher Kiriwina (Malinowski, 1948) quando produz inhames para o irmão dela, exibe a colheita e leva-a em procissão a sua casa; quando morre, o inhame maior ser-lhe-á oferecido para, na ilha Tuma ou ilha dos mortos, apresentar ao guardião, que assim ponderará o seu valor enquanto homem que vale a pena repetir através da encarnação. As formas de compreensão dos Maori  (Firth, 1929) passam por ponderar os valores que cada pessoa deve ter na sua condição. O mito do Bagré dos Lo Dabaga (Goody, 1970) serve para desenvolver as qualidades da observação e da memória. As pessoas no Ocidente têm de exibir virtudes, que estão repartidas entre os atributos da divindade, e o culto dos mortos específicos passaram a ser santos. Enquanto treino, a religião cumpre a função social de dividir cada membro individual pelo conjunto de qualidades que, previamente, compõem o modelo central – a divindade. As qualidades da mente que abstraem passam por entender a diligência, a lealdade, o amor, a compaixão, a caridade, a fé e outras virtudes que, se têm, estão atribuídas em conjunto com a sua versão negativa. Parte da abstracção feita pela mente que constrói as relações sociais são as ideias de mal e de dor. Mesmo a explicação da criação do homem é um mito do Génesis que explica, com todo o detalhe, como se chegou a saber: em companhia de outros seres humanos, da própria natureza que é a serpente, a árvore e o jardim, e prescindindo da divindade e das suas normas. O castigo da expulsão, antecipa as fadigas pelas quais passará o corpo e define com antecedência as doenças ou disfunções que terá na medida em que transforma a matéria em bens. De forma sistemática, a concepção que o homem tem da sua própria história é abstraída em formas explicativas de como entender o real: pessoalmente, experimentando, sem recurso a outras forças para além da sua, ao mesmo tempo que vai entregando os elementos do trabalho em representações que permitem lembrar nas culturas sem escrita. A palavra divindade não é suficiente, existem as representações que se vêem, assim como mais tarde se lêem. Com técnicas diversas, o homem abstrai a sua acção e recorda.

 3. O pecado

          Se o trabalho é a colaboração de seres humanos, natureza e saber experiencial dos primeiros sobre a segunda, quer dizer, o abandono da ideia de divindade ou a sistematização da matéria, que é o pecado senão uma taxinomia e uma garantia?
Influenciados como estamos pela nossa própria forma de pensar, poderemos entender os seres humanos que, pela crença, definem as formas incorpóreas e abstractas de lembrar as definições das relações sociais, dizendo que se trata de um culto de espíritos, que é como designamos tudo o que fica fora da História. Contudo, se nos recordarmos do valor que o trabalho tem entre os seres humanos que se vêem e sabem parte da Natureza, apercebemo-nos da necessidade que a ideia de pecado envolve, de distinguir para entender, na relação homem Natureza.
         A primeira parte da taxinomia consiste em manter os indivíduos submetidos ao grupo: o próprio conceito de pecado deriva do amor, isto é, a caridade entre os homens e para consigo próprios, expresso no amor da divindade. Quem rompe a lealdade com o grupo, fica exposto da forma como ficou Caim, Salomão, Jesus, Judas, Pedro, Thomas Becket, entre outros. No entanto, existe uma forma de romper por traição, e, a forma de romper porque o grupo se torna pouco razoável; ainda que nos dois casos se sofra, só a traição é castigada porque mata o entendimento entre todos, hierarquizado como é. Uma segunda parte, é o cuidado com as virtudes que a partir da divindade os homens enumeram, numa projecção das suas próprias potencialidades com as quais a revestem: justiça, paz, bondade, omnipotência, contidas no homem. Uma terceira parte da taxinomia, é a submissão à hierarquia do grupo que trabalha, onde há uma correlação entre dar a vida, ter recursos, saber administrá-los e aceitar a subordinação aos que sabem e entregaram o conhecimento e os bens que asseguram a continuidade social. Uma quarta parte da taxinomia, diz respeito à compreensão dos corpos, o seu cuidado e o seu objectivo, onde se define o entendimento da sua gestão, não só para mantê-los vivos, bem como para não desgastá-los. Ao mesmo tempo, uma quinta parte classifica os bens com que os corpos trabalham e os retira aos que não possuem entendimento ou legitimidade. Uma sexta parte refere-se à reputação das pessoas que circulam entre as coisas, já que sabem transformá-las, o que lhes confere um bom nome, quer dizer, um destino entre os homens, um lugar garantido na estrutura enquanto mantenham o seu saber, a fama que vem de preservar o contexto que guarda esse saber e as condições em que o corpo pode materializá-lo. Finalmente, a sétima parte da taxinomia é a sistematização das relações entre os homens, os seus grupos e as suas coisas, de forma que ninguém subtraia a outro o que facilita e permite a sua reprodução.
         A garantia de tudo isto está na criação das transgressões que durante muito tempo foram castigadas em nome da divindade cá na terra, enquanto que no Céu se viria a fazer como Deus entendesse. A história recente do Ocidente, com o seu antecedente de abstrair os seres humanos segundo uma concepção do trabalho que se entende primeiro e se faz depois – alma e corpo – mostra as consequências da transgressão.

4. Economia

          Parece-me que tais consequências se encontram na economia, como domínio independente, ou talvez tornado independente, da religião. O pensamento do Ocidente começa a preocupar-se com as coisas quando cria uma outra força para o trabalho que segue estritamente as regras da invenção humana, aplicada agora de forma não subjugada ao movimento natural. A luta mais esclarecedora é a discussão entre os fisiocratas e a burguesia no seu interlúdio revolucionário de 1791. Talvez seja tão importante como a da sistematização de elementos que se encontravam dispersos e que permitem a Ricardo formular a lei que orienta a criação do valor, enquanto Marx os usa para explicar a História. Assim, temos as várias lutas.
         A economia passa a ser a teoria do trabalho quando as bens adquirem movimento próprio escapando das mãos dos homens como mercadorias, e o conhecimento se especializa em qualificar a força de trabalho. A teoria que sistematiza a acumulação vem já do entendimento de que, obter o trabalho dos outros, quer dizer, não tratá-los como iguais, decorre da caridade não cumprida. A própria acumulação é um entesouramento onde apenas se armazena o coração e os sentidos, se isso a torna possível. Entende-se que o corpo sem cuidados e sem comida, sem recursos, acaba por não estar em condições de trabalhar e, usando o artifício de transpor o respeito pelas coisas, pessoas e prestígios de outros para alguns por meio da lei civil, inverte-se a realidade que sistematiza o religioso, acabando por fazer desta forma uma figura verdadeiramente de espelho. A economia valoriza o trabalho do homem a partir dos mesmos factos pragmáticos com que a religião os estuda e classifica: é da ética que vem o primeiro princípio da criação da riqueza, o trabalho; enquanto que o segundo, o valor, pode dizer-se que vem da apreciação da diligência, honestidade e cumprimento dos valores domésticos e familiares. O terceiro resultado, a riqueza, acumulada ou lucro da bondade , que é o conceito que subsume  o saber usar os bens para os objectivos para os quais servem. É aqui que a economia consegue a separação dos homens que entendem o trabalho pela dor, a riqueza pelo milagre, a acumulação pelo respeito ao próprio corpo e ao dos outros. Cria um conhecimento do movimento dos recursos, da sua produção, circulação e consumo que escapa a quem não possui o entendimento dos princípios com que se avalia o cálculo do que produzir, ao mesmo tempo que se gera uma separação entre esse conhecimento e as pessoas, através do emprego de técnicas para recordar princípios que não são apenas escritos, mas obedecem a formas de registar por escrito depois de aplicar uma bateria de outros conhecimentos, seja no movimento da produção industrial que obriga a desenvolver a teoria económica, seja nas próprias regras e abstracções com que o saber económico é produzido. Conteúdo e forma colocam o saber reprodutivo longe dos não especialistas, tomando vantagem o proprietário que lucra através das formas de entender os seres humanos pela sistematização funcional que o pecado ensina. A economia funciona com a teoria do mal.

 5. O mal

          É uma acumulação letrada através do tempo. Assim como o bem está reflectido na divindade que é infinita, e é duradouro enquanto virtude, o mal é conjuntural. O problema que o ser humano tem, por onde é atingido pelos outros ao descuidar-se, é a sua própria fragilidade no meio da matéria. Não há só que comer, beber, vestir-se; há que saber como se faz, pô-lo em execução e mostrar que se persiste e triunfa. A resistência à virtude, é a melhor ideia que encontro para definir o mal. Ao conjunto há ainda a acrescentar a afectividade e o desejo que fazem parte do corpo que o homem veste. Estes elementos individualmente distribuídos por todos os membros de um grupo social, e por igual, colocam-nos em guarda uns frente aos outros porque cada indivíduo que sente a necessidade é com outro que vai resolvê-la. Não se pode entender esta fragilidade no vazio, pois não existe assim; nem pela categoria histórica, já que é demasiado geral. A fragilidade reside nos indivíduos que vivem relações de aliança formal, mas que funcionam pela capacidade ou incapacidade de transformar uma ou outra parte da Natureza. Não é  a reciprocidade que permeia as relações humanas numa teoria sobre a dádiva: é a competência que distribui desigualmente capacidades entre indivíduos que vivem em grupos. O que relaciona cada um destes elementos com os de fora do seu grupo de pertença, é a sua própria capacidade de produzir o óptimo: bem, rapidamente, e para suprir as necessidades de muitos.
         A sabedoria assim avaliada, é controlada diversamente através do tempo, da mesma forma que se entende que o grupo do Génesis, ao ignorar Deus, peca. A capacidade é um elemento de hostilidade quando não possui, vem de Deus quando a pessoa que a distribui entre todos o faz sem vantagens materiais, ou do Diabo quando se aprende o que dá vantagem. O mal é saber para vantagem própria, controlando com o saber os recursos que defendem o homem da sua fragilidade. Preguiça: afasta do trabalho; luxúria: não permite controlar a fertilidade; avareza: retira bens da circulação; usura: acumula-os em poucas mãos. É por isso que são castigados. Como também o é a experimentação fora da teologia, ou seja, a aprendizagem das as técnicas de conhecimento que estão definidas fora do grupo em que a pessoa está. A capacidade não explicada para poder trabalhar optimizando, assim como a capacidade não submetida à hierarquia e poder que não acumula para glória da divindade, são bases do mal.
         Desde o desenvolvimento da teoria do contrato, a suposta igualdade resolveu a situação parcialmente, mas colocou-as de forma ininteligível por meio de regras da cultura letrada, temática que constitui um outro capítulo deste livro. A capacidade do homem para produzir valor económico que se troca, pode entender-se na medida em que a sua habilidade é teorizada em proibições frente à sua fragilidade. Pelo que, o que o conceito de pecado faz, é sistematizar a natureza e capacidade dos seres humanos na construção das suas relações.

 6. O valor

          Será ao económico, não ao ético que me refiro aqui. Não me parece ser possível separar as duas formas de o conceptualizar: o trabalho é de quem o faz. Na economia, o trabalho é conceptualizado e entendido como a aplicação do esforço humano à transformação da natureza e esta actividade cria, de acordo com o tempo que demora, a desigualdade entre as coisas que permite, avaliando-as, equiparando-as e  trocando-as. Há quem diga que é a escassez do bem produzido que cria o seu valor; há quem diga que a riqueza resulta da utilidade marginal. Contudo, o valor é, em todas as hipóteses, a avaliação de um bem que resulta do trabalho humano, com ou sem utilidade marginal. Estas ideias sistematizam a criação de bens e a subordinação do Homem aos mesmos, mas mantêm o conceito básico de actividade humana dirigida para a transformação da matéria: o que se procura é domesticação da matéria, seja pela vida da ciência para quem entende o raciocínio letrado, seja através do raciocínio que deriva a experiência acumulada em várias divindades que se pronunciam sobre a heterogeneidade do mundo, unificando actividades diversas em prol da fabricação de um objecto, ou da organização de uma tarefa.
         A ideia básica do trabalho foi concedida no Ocidente como uma condição para o homem viver num estado natural de economia natural e é esse conceito que define a criação do valor. Os textos que definem a economia natural, ou relações sociais sistematizadas a partir da subordinação da matéria à habilidade humana organizada em família e grupo de parentes, estão baseados nas ideias definidas teologicamente através do tempo e acumuladas em escritos. Estes textos acabam por configurar as relações de uma forma definitiva, contextualizando o trabalho. O primeiro tópico que a ética aborda, é o do engenho de cada um, enquanto virtude, acompanhado pela habilidade e pela a fidelidade ao que se sabe fazer e a obediência para com quem manda fazer. O segundo, explicita que o trabalho é digno, ou seja, a pessoa é socialmente aceite, cultivada e respeitada desde que domine uma forma de subordinar a natureza, sendo assim uma parte da memória do grupo. Simultaneamente, a actividade produz uma igualdade entre os himens que a praticam: todos os seres humanos estão sujeitos à necessidade de produzir uma parte da vida e esta produção, que acaba por ser desigual porque são muitas as tarefas, gera o conceito de justiça ou conjunto de regras que resguardam a igualdade entre as pessoas, apesar da diferente aplicação do seu esforço. Em terceiro lugar, esta justiça encontra-se na medida em que a Natureza está partilhada através de um sistema privado de possuí-la, pagando-se a quem não possui um salário que seja conveniente para a actividade realizada conforme a condição daquele que produz, do que produz, e para quem o faz. Em quarto lugar, os bens produzidos neste sistema, em virtude do trabalho e da propriedade, podem-se trocar, mas não devem negociar já que esta actividade fica fora do foro da economia natural, sem criação de valor pelo esforço humano, mas sim por moeda, que não ajuda à salvação. Porque, felicidade, satisfação ou salvação, são o objectivo de criar valor, tentando o homem criar um estado que o projecta para além da sua fragilidade para normativizar a sua capacidade.

 7. A prova

         A sociedade que cria produtores não cria sábios. A sabedoria é a sistematização, o cultivo da teoria que organiza as actividades entre os homens, a abstracção das características do real em ideias que o ampliam e desenvolvem o conhecimento. Passar da actividade à teoria, é retirar pessoas da produção. O que uma sociedade cuida; especialmente nos sistemas que centralizam a produção acumulando-a em lucro via valor marginal, tudo o que os produtores deixam de receber pela sua actividade; é a manutenção de um stock de pessoas que derivem o seu saber da prática directa com as coisas. O homem que fica sujeito ao grupo e à lei. A dimensão da sujeição básica, que cria a virtude do engenho no trabalho, é a de colocar as habilidades ao serviço do grupo: é por isso que, apesar da divisão da sociedade do salário em tantos indivíduos como capacidades particulares existem, a avaliação do trabalho ainda se apresenta como um serviço à nação. Trabalhar dignifica a pessoa e engrandece o país, sendo esta a ideia que se transmite ao cidadão que se fabrica textualmente nas escolas. A dimensão básica que serve para sistematizar tudo aquilo que, depois disso, é pecado, encontra-se no texto básico da gesta histórica ocidental, o evangelho. Nesta dimensão, existem três ideias: uma, é a de que ou se está unido aos outros ou se anda perdido, a menos que o coração esteja unido, todo o corpo fraquejará. A segunda é que, apesar da união com os outros, a sua igualdade e competência colocarão pedras no caminho que fazem tropeçar: quer dizer, se está bem com o grupo com que se trabalha, outros há que querem enganar e fazer mal. Aqui, ficamos advertidos acerca da condição humana que o evangelho explica claramente e que a teoria económica de hoje chama concorrência, ajuste entre a oferta e a procura. Uma terceira ideia que o evangelho veicula é a de que o Ocidente sistematizou a sua construção da História e põe na voz de Jesus, é a de que a vontade nem sempre é livre, explicando esta ausência de liberdade pela metáfora do demónio. O conjunto de identidades com que o imaginário ocidental governa a sua conduta, passa pela criação de conceitos que explicam a sujeição ao não bem porque há outra vontade que subjuga. Se digo ao não bem, é para enfatizar a ideia de que o homem, feito à imagem da divindade, que é como a si mesmo se concebe, não quer o mal. Se o consegue pessoalmente, é porque há agentes externos que o promovem. As relações sociais, então, contêm ideias que, por meio do cultivo do conceito de alma e de salvação, procuram entender o que é uma vontade livre que permita manter cada membro do grupo dentro das suas capacidades médias na construção da sua história. Porém, esta construção é guiada pela ideia que a Igreja desenvolve. A Igreja serviu de veículo de manutenção da ideia religiosa com via do saber, separando a inteligência da experimentação e submetendo a explicação dos fenómenos à crença no mal que só se afasta do homem pelo seu engenho. A virtude do trabalho  resguarda do pecado.

 8. A cultura letrada

          A experiência humana pode-se cristalizar em escritos que são devolvidos ao povo pelas explicações dos especialistas. Embora a sociedade que cria produtores não crie sábios, não deixa abandonado o grosso das pessoas. A teoria é entregue de forma sistemática através do tempo, em conceitos que decompõem o real e colocam a dúvida permanente na dimensão básica das relações sociais: há que amar e viver para os outros, mas os outros pode fazer-nos mal. O que se verifica porque em cada indivíduo há a possibilidade de enganar. A teoria  que se explica por meio de Jesus diz que o pecado é a falta de bondade, as paixões que deixam arrastar para a ira e para a luxúria e o desejo impuro. Esta ideia vem de um povo que é formal e ortodoxo na forma de entender a vida: criar. O objectivo da vida é criar, como ensina a própria metáfora da divindade. Desenvolvimento histórico da ideia de pecado expressa-o: o pensamento que se desenvolve fora do real, infrutífero, sendo o real a ordem que se construiu, e a indecisão moral face ao dever, colocam a pessoa dividida. Os intelectuais observaram o comportamento e explicam-no por fórmulas que procuram aliviar a dor ou as consequências improdutivas da condição humana em prol da não esterilidade histórica do grupo. Não é a revelação que entrega esses dados, é a observação. S. Paulo observa que o desejo interferir com a lei que ordena a acção e o pensamento; S. João define o isolamento do indivíduo com a incapacidade do homem para possuir-se, aceitar-se a si mesmo e estar com e no meio dos outros, sendo o orgulho e a sensualidade duas condições que interferem no pensamento. A Patrística do século II até à Idade Média, observa os seres humanos a afastarem-se das ideias judaico-cristãs de unidade, por meio de condutas que define como fornicação, idolatria, assassinato, falta de vontade para aderir à vontade da divindade que se expressa na ordem natural  com que se explica a realidade, como explica Agostinho de Hipona: a teoria não causal da relação entre as coisas, pessoas, ideias e tecnologia. O crescimento acumulado pela palavra escrita – o verbo feito cátedra – , leva, na Idade Média, a definir que o pecado é amar os homens e não a Deus, onde a concupiscência é o conceito central. A reforma, a contra-reforma e o pensamento actual da teoria, colocam o pecado num só plano: a luta entre razão e paixão, onde o pecado é o facto social pelo qual o trabalho de todos não reverte em favor de cada um, mas sim de quem toma vantagem no entendimento da reprodução. Eu diria, na senda de Kant (1793), que o problema se coloca pelo facto de cada homem estar dotado da razão; e acrescentaria que numa cultura onde se produz em grupo mas se aprende individualmente, cultiva-se a separação de uns e de outros por meio de pensar a igualdade e desenvolver o contrato, onde o conceito de pecado acaba por transferir-se para uma forma de regular a produção ao actuar na consciência. E é assim que a lei positiva o entende agora, a Igreja o transpõe e a teoria económica o usa. O conceito de pecado é, pois, a explicação das possibilidades de um real contraditório composto por indivíduos dotados de razão que produzem e reproduzem socialmente: onde a opção individual se doseia com a solidariedade. O pecado sistematiza os elementos da realidade que dinamizam o processo de reprodução da sociedade.

 9. A reprodução social

          O pecado sistematiza os elementos do real que dinamizam o processo de reprodução da sociedade. Estes elementos são os recursos que classificamos em pessoas, coisas, ideias e que estão contidos num conhecimento herdado que gosto de chamar tecnologia. A relação entre todos estes recursos, a matéria que tem de ser trabalhada, os homens que a trabalham, as ideias que teorizam como trabalhá-la e que resultam de lidar com ela, formam a teoria onde o conceito de pecado sistematiza e classifica a conduta social. Porém, existe uma capacidade teórica mais ampla no conceito, que creio que deve ser explorada: a capacidade de permanentemente reclassificar as pessoas. De facto, a economia ao longo do tempo foi abstraindo as qualidades das actividades que as pessoas desempenham, convertendo-as em ofícios. O lugar que uma pessoa ocupa na estrutura social tem a haver com a apreciação do ofício que desempenha por relação à forma reprodutiva mais importante do seu tempo; as qualidades com que desempenha o seu ofício ou o trabalho parte do valor do conhecimento e capacidade que se pode exigir da pessoa nos postos de trabalho. Durante a vigência, ou dominância, no pensamento humano da ética económica da religião, as condições pessoais do desempenho são avaliadas: seja a virtude que a descreve a pessoa à propriedade, seja o cultivo do mal e da ideia de ser pecador e de transgredir que se junta ao uso do corpo no trabalho. Na taxinomia que propus, a pessoa que está mais perto da divindade é a que sabe que não usa o seu corpo  na produção, enquanto que mais perto da terra está quem só tem o seu corpo para lidar com a Natureza. O pecador, sendo aquele que não tem alternativa de conhecimento, é considerado ignorante e possui um lugar fixo nas relações sociais: fora da estrutura dos justos, fazendo o trabalho mais bruto, mais barato e mais “baixo”. É preciso ver a correlação entre o comportamento classificado como pecado e a ausência de saber especializado em todos os campos específicos da actividade, e este pecador específico é bêbado, o opulento, o ignorante dos cuidados com o seu corpo e a sua saúde, o não diligente e o subserviente. Não é o pecador geral que vive em tal estado porque tentou saber e tornar-se independente da divindade, mas o específico que está associado à natureza e à falta de sabedoria para controlar a sua capacidade. Esta é a função do pecado desenvolvida pelas ideias económicas investidas na religião pela letra da lei.

 10. E a eficácia simbólica?

          É o que eu me pergunto também. Porém, para ter uma resposta, há que entender a eficácia do simbólico, o totem. Durante todo o meu argumento insisti em que a sistematização do mal é o que permite entender o real que orienta a construção das relações sociais, o meu outro conceito para definir reprodução social. Recordo o exemplo do australiano que morre ao ingerir a comida do chefe, que Freud relata em Totem e Tabu (1912); penso nos milagres, não naqueles que cada religião alega para sistematizar e provar a relação da palavra com o real, mas naqueles em que as pessoas pensam e que acontecem na rede de circunstâncias e casualidades com que vão coordenando as suas ideias com o mundo material. Josep Comelles, no ano de 1989, durante uma troca de ideias, quando proferi a conferência que este texto reproduz, propunha-me uma distinção entre prevenção e cura, onde a virtude traz a graça que permite resistir ao mal, e a confissão repara a alma do mal feito. Penso que, para que o simbólico tenha vitalidade, deve emanar da própria criação da actividade das pessoas. É verdade que a sistematização do mal cria a culpa, ou como diz Le Goff (1981): repressão. É esta a eficácia do simbólico do pecado, criar um sentido para alguma coisa que vai suceder ou sucedeu, como a morte ou a doença às quais o pecado está associado. Contudo, talvez isto só aconteça em grupos onde se perdeu a capacidade de gerar outras teorias, como a de reconstruir a saúde, a de cuidar do corpo. A eficácia simbólica do pecado derivaria do entendimento do texto do qual provém, que não é manipulado nem interpretado pelas pessoas: ao contrário, existe, inclusive, um mediador: o padre, que é a memória do que nesses textos está contido. Penso que é de insistir que a eficácia do pecado reside na exacta medida da explicação que dá acerca dos limites possíveis da conduta social e individual e conhecimento da suas consequências sociais. O sentido pragmático de quem, se não trabalha, se não produz o seu alimento ou o seu salário, tem de defender os limites do que lhe pertence; quando esse limite é violado, começa o pecado, se necessário, com a agressão. É provável, contudo, que para entrar neste campo seja preciso mudar de registo e de nível de análise. Aqui só tentei entender o papel que o conceito tem na construção da reprodução.

BIBLIOGRAFIA

A Bíblia (1611), 1952, Collins Clear-Type Press, London.
COMELLES, Josep Maria, 1989: “Ve no se Dónde, Trae no se qué. Reflexiones sobre el Trabajo de Campo en Antropologia de la Salud”,  in ARXIU d’ Etnografia de Catalunya, nº 7, Tagarrona.
FIRTH, Sir Raymond, 1929: Primitive Economies of the New Zealand Maori, George Routledge and Sons, Londres.
FREUD, Sigmund, (1913), 1919: Totem and Taboo. Resemblances between the psychic lives of Savages and Neurotics, George Routledge and Sons Londres.
GOODY, Jack, 1970: The Myth of the Bagré, Clarendon Press, Oxford.
KANT, Immanuel (1793) 1992: A Religião no limite da simples razão, Edições 70, Lisboa.
LE GOFF, Jacques, 1981: La Naissance du Purgatoire, Gallimard, Paris.
MALINOWSKI, Bronislaw, 1948: Magic, Science and Religion and other essays, Bacon Press, Massachusetts.
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*Conferência proferida na Universidade Central de Barcelona, em 14 de Março de 1989. (Traduzido do castelhano por Filipe Reis).

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