
  1. Introdução
         Nas pesquisas que tenho  realizado até ao presente com o objectivo de reconstruir as relações  sociais nas sociedades europeias, cometi o erro, em primeiro lugar, de  me apoiar demasiadamente na observação de terreno, e em segundo, de  apenas correlacionar essas relações com a história económica e com os  costumes locais de casamento e herança. Quando estudei a organização do  casamento entre os camponeses chilenos, entre os quais se aplicam as  ideias acerca do direito e da ordem, não entendi que o casamento sem a  presença do padre, entre eles praticado, era tolerado pela Igreja e pelo  Direito Canónico. Alguns anos mais tarde, pesquisando em Vilatuxe , na  Galiza, pude isolar diferentes práticas de casamento, em função de  diferentes tipos de herança, e notei que, em certas condições  históricas, um sistema que supostamente favorece o filho mais velho, de  facto autoriza a transmissão de terras e bens ao mais capaz dos  descendentes. Não me havia apercebido de que a contradição entre o que  se diz e o que se faz se inscreve numa continuidade histórica lógica,  que a totalidade coexiste no saber das pessoas e que os camponeses  retiram desse saber o que lhes é necessário em função das  circunstâncias.
          Na época, propunha-me estudar as relações sociais entre os  camponeses través da produção e das trocas, dois factores aos quais o  trabalho camponês parece estar submetido. A variedade das escolhas em  matéria de herança e de casamento aparecia-me assim como consequência  dos constrangimentos impostos pelo capital à organização camponesa do  trabalho.
1 Noutros tempos, parecia-me que nos sistemas onde o objectivo é a maximização dos recursos, as condições de exercício de uma lógica de reciprocidade estariam moldadas pela lógica do lucro. Foi bem mais tarde, em Portugal, na aldeia de Pinheiros, que compreendi que a escolha do cônjuge e dos herdeiros está dependente, não só da História e das trocas económicas, como também de um corpo doutrinário traduzido pelos rituais (numa palavra, religião), sobre o qual se fundamentam os critérios da reprodução. Se é verdade que a reprodução fora do casamento perdia terreno, não é menos verdade que os camponeses que atribuíam cada vez mais importância à conjugalidade enquanto lugar da propriedade, se outorgavam o direito à bastardia e ao celibato. Isto conduziu-me a pensar que o casamento foi, e ainda é, a secção de pessoal onde são produzidos os produtores, o meio pelo qual adquirem uma parte da sua formação, que fica completa pelo credo católico tal como é ensinado pela Igreja.
2 De facto, o casamento apareceu-me como uma das práticas, entre outras, que um sistema heterogéneo de reprodução conhece, dentro do qual o não casamento ( celibato, bastardia), parece ser complemento da reprodução depessoas que, enquanto bens reprodutivos, são postos em circulação pelas terras.
Convém, contudo, distinguir a época em que a posse da terra estava ligada a um título (vincula), independentemente das qualidades pessoais do seu possessor em matéria de gestão de recursos. Por outras palavras, diferenciar em época, em que era necessário ser rei, conde, morgado ou clérigo, daquela em que, para possuir terra, se tornou necessário dispor de um saber tanto agrícola como bancário, sendo ambos os motores da produção, ora como na pequena exploração, enquanto sistema reprodutivo, se dispõe de pouco dinheiro para alugar força de trabalho, as trocas de serviços assumem uma importância cada vez maior. A entreajuda, apoiando-se no contrato tácito, foi organizada durante décadas com base primeiro no parentesco, depois na vizinhança e parentesco na medida em que as aldeias se desenvolviam, finalmente na qualificação e no parentesco quando os camponeses tiveram de especializar a sua produção para responder às exigências do capital nacional ou multinacional, no seio de cooperativas formais. Contrato tácito que parece estar garantido pela necessidade generalizada de fazer circular as pessoas e os bens, e que, idealmente, repousa sobre as ideias do bem e do mal ou, para utilizar os mesmo termos dos actores, de graça e pecado. Este contrato faz parte de uma organização da produção onde a estrutura do parentesco, ou mais exactamente a construção do parentesco, é orientada por uma teoria da acção a que se chama religião, esse corpus de conhecimento que antecede o saber económico e classifica as pessoas, os recursos e as relações entre ambos por meio da doutrina e do direito. É por esta razão que, o antropólogo das sociedades rurais europeias, se deseja entender a fabricação da trama destas sociedades, deve convocar o corpo escrito de conhecimentos que, manifestamente, influencia o que se observa no terreno. As aldeias descartam-se dos constrangimentos da reprodução do capital graças a uma construção cultural da sociedade que, e é isto que eu pensava há já alguns anos, lhes permite esquivar-se a esses constrangimentos, ou recorrem a um stock de conhecimentos que lhes indica como desenrascar-se de cada vez que a produção social está num beco sem saída?
Nas sociedades rurais europeias, o saber transmite-nos oralmente, mas uma categoria de codificadores tem-no registado sempre por escrito. De facto, com os seus arquivos, a sua arquitectura, as suas pinturas, as suas procissões, a sua liturgia, os seus sermões, mas, sobretudo, com o seu conhecimento de algumas técnicas de produção, as suas possessões e a administração dos seus membros num corpo de produtores que ela própria forma, a Igreja Católica impôs, ou mais exactamente recolheu e depois difundiu, um código de conduta que, por um lado, permite-lhe reproduzir-se, graças ao trabalho camponês e, por outro, fornece um conjunto de elementos pragmáticos que asseguram a continuidade, no tempo e dos recursos, do campesinato. É neste corpo de conhecimentos, onde a razão gráfica define e regista o comportamento das populações de cultura oral que convém, da mesma forma que pela observação participante, procurar os princípios de reprodução do campesinato. Pode-se, contudo, perguntar se o comportamento reprodutivo é resultado de uma racionalidade construída sobre a experiência que os camponeses possuem do mundo da Natureza, mas, então o que dizer da história cumulada, ou do corpo de normas cumuladas que, nos últimos cem anos, encontram-se na Europa? ou, pode-se correlacionar com as normas definidas pela classe que se reproduz com base no trabalho camponês, em funções nas quais os camponeses fazem as suas escolhas ou, por outras palavras, tentam maximizar a reciprocidade?
Eu parto da hipótese segundo a qual do Direito Canónico fornece um código de conduta para os camponeses aprenderem através do catecismo, dos rituais, dos sermões, assim como das relações sociais sobre as quais processa-se a reprodução, sempre segundo as circunstâncias, quer se trate da escolha do cônjuge ou do alcance de instituições, tais como o casamento ou celibato. O Direito Canónico é, portanto, um corpo de conhecimentos que, por um lado, fixa a norma, e por outro, opera simplesmente uma classificação das situações de maneira a facilitar as opções, Enquanto que a racionalidade económica é uma teoria da acção que exerce um constrangimento sobre o comportamento das pessoas, de forma que são obrigadas a manipular para criar soluções de substituição no domínio de produção, a racionalidade religiosa é uma teoria da acção que, no domínio de reprodução, fornece as soluções às quais se recorre para organizar o trabalho de forma a produzir, ao mesmo tempo, tanto produtores como bens.
2. O modelo
1 Noutros tempos, parecia-me que nos sistemas onde o objectivo é a maximização dos recursos, as condições de exercício de uma lógica de reciprocidade estariam moldadas pela lógica do lucro. Foi bem mais tarde, em Portugal, na aldeia de Pinheiros, que compreendi que a escolha do cônjuge e dos herdeiros está dependente, não só da História e das trocas económicas, como também de um corpo doutrinário traduzido pelos rituais (numa palavra, religião), sobre o qual se fundamentam os critérios da reprodução. Se é verdade que a reprodução fora do casamento perdia terreno, não é menos verdade que os camponeses que atribuíam cada vez mais importância à conjugalidade enquanto lugar da propriedade, se outorgavam o direito à bastardia e ao celibato. Isto conduziu-me a pensar que o casamento foi, e ainda é, a secção de pessoal onde são produzidos os produtores, o meio pelo qual adquirem uma parte da sua formação, que fica completa pelo credo católico tal como é ensinado pela Igreja.
2 De facto, o casamento apareceu-me como uma das práticas, entre outras, que um sistema heterogéneo de reprodução conhece, dentro do qual o não casamento ( celibato, bastardia), parece ser complemento da reprodução depessoas que, enquanto bens reprodutivos, são postos em circulação pelas terras.
Convém, contudo, distinguir a época em que a posse da terra estava ligada a um título (vincula), independentemente das qualidades pessoais do seu possessor em matéria de gestão de recursos. Por outras palavras, diferenciar em época, em que era necessário ser rei, conde, morgado ou clérigo, daquela em que, para possuir terra, se tornou necessário dispor de um saber tanto agrícola como bancário, sendo ambos os motores da produção, ora como na pequena exploração, enquanto sistema reprodutivo, se dispõe de pouco dinheiro para alugar força de trabalho, as trocas de serviços assumem uma importância cada vez maior. A entreajuda, apoiando-se no contrato tácito, foi organizada durante décadas com base primeiro no parentesco, depois na vizinhança e parentesco na medida em que as aldeias se desenvolviam, finalmente na qualificação e no parentesco quando os camponeses tiveram de especializar a sua produção para responder às exigências do capital nacional ou multinacional, no seio de cooperativas formais. Contrato tácito que parece estar garantido pela necessidade generalizada de fazer circular as pessoas e os bens, e que, idealmente, repousa sobre as ideias do bem e do mal ou, para utilizar os mesmo termos dos actores, de graça e pecado. Este contrato faz parte de uma organização da produção onde a estrutura do parentesco, ou mais exactamente a construção do parentesco, é orientada por uma teoria da acção a que se chama religião, esse corpus de conhecimento que antecede o saber económico e classifica as pessoas, os recursos e as relações entre ambos por meio da doutrina e do direito. É por esta razão que, o antropólogo das sociedades rurais europeias, se deseja entender a fabricação da trama destas sociedades, deve convocar o corpo escrito de conhecimentos que, manifestamente, influencia o que se observa no terreno. As aldeias descartam-se dos constrangimentos da reprodução do capital graças a uma construção cultural da sociedade que, e é isto que eu pensava há já alguns anos, lhes permite esquivar-se a esses constrangimentos, ou recorrem a um stock de conhecimentos que lhes indica como desenrascar-se de cada vez que a produção social está num beco sem saída?
Nas sociedades rurais europeias, o saber transmite-nos oralmente, mas uma categoria de codificadores tem-no registado sempre por escrito. De facto, com os seus arquivos, a sua arquitectura, as suas pinturas, as suas procissões, a sua liturgia, os seus sermões, mas, sobretudo, com o seu conhecimento de algumas técnicas de produção, as suas possessões e a administração dos seus membros num corpo de produtores que ela própria forma, a Igreja Católica impôs, ou mais exactamente recolheu e depois difundiu, um código de conduta que, por um lado, permite-lhe reproduzir-se, graças ao trabalho camponês e, por outro, fornece um conjunto de elementos pragmáticos que asseguram a continuidade, no tempo e dos recursos, do campesinato. É neste corpo de conhecimentos, onde a razão gráfica define e regista o comportamento das populações de cultura oral que convém, da mesma forma que pela observação participante, procurar os princípios de reprodução do campesinato. Pode-se, contudo, perguntar se o comportamento reprodutivo é resultado de uma racionalidade construída sobre a experiência que os camponeses possuem do mundo da Natureza, mas, então o que dizer da história cumulada, ou do corpo de normas cumuladas que, nos últimos cem anos, encontram-se na Europa? ou, pode-se correlacionar com as normas definidas pela classe que se reproduz com base no trabalho camponês, em funções nas quais os camponeses fazem as suas escolhas ou, por outras palavras, tentam maximizar a reciprocidade?
Eu parto da hipótese segundo a qual do Direito Canónico fornece um código de conduta para os camponeses aprenderem através do catecismo, dos rituais, dos sermões, assim como das relações sociais sobre as quais processa-se a reprodução, sempre segundo as circunstâncias, quer se trate da escolha do cônjuge ou do alcance de instituições, tais como o casamento ou celibato. O Direito Canónico é, portanto, um corpo de conhecimentos que, por um lado, fixa a norma, e por outro, opera simplesmente uma classificação das situações de maneira a facilitar as opções, Enquanto que a racionalidade económica é uma teoria da acção que exerce um constrangimento sobre o comportamento das pessoas, de forma que são obrigadas a manipular para criar soluções de substituição no domínio de produção, a racionalidade religiosa é uma teoria da acção que, no domínio de reprodução, fornece as soluções às quais se recorre para organizar o trabalho de forma a produzir, ao mesmo tempo, tanto produtores como bens.
2. O modelo
         Casar, na Europa católica, é  casar pela Igreja.  J. Goody 4 recorda-nos que é assim desde há séculos  na sociedade ocidental, e os habitantes de Vilatuxe, na Galiza ou de  Pinheiros, em Portugal, não organizam de outra forma a sua reprodução.  Os registos paroquiais de Pinheiros testemunham- – no desde 1668.
         Casar-se na fé católica  significa sujeitar-se a numerosas exigências, fixadas numa legislação  multiforme que, só muito recentemente, em 1911 e 1983, foi compilada nos  códigos canónicos. Isto não quer dizer que toda a gente se casa, ou que  a reprodução humana tenha como contexto apenas os
laços do matrimónio, bem pelo contrário. 5 Contudo, aqueles que se casam
devem responder a exigências que acabam  por moldar as suas escolhas matrimoniais, exercendo sobre eles um  verdadeiro constrangimento. Até 1867, o Direito Canónico era, em  Portugal, o único corpo de normas que regulavam as trocas matrimoniais.  Entrara em vigor no século XII, paralelamente ao Direito Romano. Nessa  época existiam três corpos de normas. Em primeiro lugar, o direito  local, que se desenvolvera desde os tempos visigóticos: o Jus Communae era o direito do reino; de forma paralela, mas também subsidiariamente, as autoridades serviam-se do Corpus Juris Civilis,  de Justiniano (530), traduzido para o português por D. João I, em 1426,  o qual foi objecto de diversas compilações, tais como as Ordenações Afonsinas (1447), Manuelinas (1521) e Filipinas (1603), sem contar com a precoce aplicação do Direito Romano que Las Siete Partidas de Afonso X representava (1348). Todos estes esforços visavam unificar o Jus Communae,  e este direito mais sofisticado que regia as relações entre os homens e  as coisas tinha como objectivo principal determinar as formas que poder  e possessão sobre terras e territórios assumem.
         Existia, por fim,  simultaneamente, um corpo relativo à Igreja e ao bem estar espiritual  dos fiéis, erigido sobre os três pilares do conhecimento: a Bíblia, a  tradição patrística e os escritos papais. Dogma e doutrina, fé e  exegese, escatologia e pregação, constituem as bases deste código de  conduta social que pretendia dar a conhecer a vontade de Deus, – direito  divino – e a Sua organização dos fenómenos naturais – direito natural  -, vontade essa incarnada em homens e numa instituição política: a  Igreja. Devido ao facto do poder da Igreja e dos seus aliados (a nobreza  durante o
Antigo Regime, de facto os proprietários  dos diferentes territórios portugueses), uma das componentes do Direito  Canónico, o direito eclesiástico, assume uma importância cada vez maior  nos assuntos seculares, que se conservará até ao momento em que os  mosteiros, as paróquias e as capelas se viram despojadas das suas terras  pelos liberais.
         Em 1867, o Código Civil  reproduziu as normas morais do Direito Canónico para o casamento civil  que, dessa forma, se tornou um sucedâneo laico do sacramento do  matrimónio. Em 1911, o casamento civil foi tornado obrigatório para  todos os que quisessem voltar a casar; em 1944, a Concordata entre  Salazar e Pio XII restabeleceu o carácter facultativo do casamento  civil. Entre 1911 e 1944, o casamento dependeu, porém, de dois direitos.  O catecismo de Pio XII ensinava que o casamento civil, era apenas uma  exigência do Estado, não criando nem direitos, nem laços entre os  esposos; e, depois de 1944, a doutrina católica portuguesa, tal como o  catecismo a ensinava, precisava que, tendo em conta o novo acordo, não  era lícito para um católico casar-se no registo, na medida em que  casar-se na Igreja satisfazia tanto as exigências do Direito Civil como  as do Direito Canónico. As coisas não mudaram desde então.
         Na atmosfera levantada na aldeia  onde pesquiso, desde que o matrimónio civil existe, ninguém recorreu ao  registo já que é o padre a testemunha que se encarrega de enviar cópia  do acto sacramental ao conservador. A meu ver, isto é a consequência,  pura e simples, do facto de a religião ser a expressão da organização  racional do trabalho, que coincide com a organização ideal de uma  realidade material, por certo criada pelos camponeses, mas que tem,  desde longa data, sido incorporada na teologia através de um corpo de  políticas, o que faz com que nos deparemos com um modus vivendi  firmemente enraizado, que requer, com efeito, o trabalho camponês para  além da terra, à qual, aliás, os modos de acesso variaram ao longo do  tempo. Produtores. Os produtores resultam de acasalamentos, são objecto  de atentos cuidados e sujeitos  de uma longa aprendizagem. È deles que,  em nome da vontade divina, se preocupa o Direito Canónico, o que  representa duas vantagens: indica de forma pragmática a via a seguir  para proceder à distribuição das pessoas pelas terras, fazendo da troca  matrimonial um contrato essencial; todos os outros – foro (enfiteuse),  arrendamento, venda – dele são subsidiários, para não dizer que, sem  contrato de casamento, estes não podem ser realizados já que é  estritamente necessária a força de trabalho para movimentar as técnicas  que permitem produzir bens e renda, logo, para alugar ou comprar terra. A  este respeito, o Direito Canónico precisa claramente que uma vontade  superior classifica os indivíduos numa ordem natural hierarquizada, que  sobre alguns deles pesam interditos, o que, por outro lado, facilita o  seu afastamento em caso de necessidade. Retira também aos homens a  capacidade de separar o que Deus uniu, e os que administram a vontade  divina velam ciosamente esta disposição pela via da confissão ou do  poder secular dos tribunais.
         As técnicas camponesas exigem  uma longa aprendizagem; é necessário tempo para conhecer bem uma  parcela, o regime das chuvas, os direitos sobre a água, a reprodução dos  animais… O trabalho camponês executa-se a um ritmo que pressupõe a  instalação duradoura de seres humanos de forma que aprendam eles  próprios a fixar-se; e o casamento, contrato essencial que subsume  potencialmente todas as outras relações de trabalho, assegura a  estabilidade material necessária. Na organização do trabalho, o  casamento, enquanto contrato, só se torna secundário em relação a um  outro que é, afinal, a base fundamental do matrimónio: a fabricação dos  produtores. Na época em que os trabalhadores não estavam instalados nas  terras – até ao século XX – a fabricação dos produtores tinha lugar fora  do casamento, cada vez que se fazia sentir a necessidade urgente de  força de trabalho que não estivesse ligada a uma terra inalienável. Os  possuidores de bens inalienáveis (reis, condes, padres), formavam uma  categoria etico-económica da qual se pode dizer que, ao fim e ao cabo,  colaborava na produção de trabalhadores. Contudo, importa agora atentar  na forma como funciona o casamento para um grupo de pessoas cujas  técnicas de reprodução dependem de uma natureza que, nas ideias, é  transformada numa ordem natural criada pela vontade divina. Em que  consiste esta normalização das suas vidas, à qual se submetem as pessoas  quando se casam, e o que sabem dela?
         Eis alguns elementos de  resposta: o código canónico posto a funcionar no princípio do século XX e  reformado por João Paulo II, em 1983, só admite a reprodução humana  entre as pessoas aptas a raciocinar, possuindo capacidade jurídica e  dando o seu mútuo consentimento. Esta visão remonta a Tomás de Aquino,  cuja Summa Teologica (1269), 6 constitui a base da  razão individual, ideia que emprega todo o pensamento católico sobre a  organização das relações sociais, mesmo se os católicos têm,  aparentemente, comportamentos colectivos. Desde o nascimento até à idade  de 7 anos, a criança é considerada como sendo incapaz de decisão (Can.  97); designam-se menores aqueles que, tendo idade compreendida entre 7 e  18 anos, se presume terem uso da razão estando, consequentemente, aptos  a assumir responsabilidades ou, dito de outra forma, a trabalhar (Can.  97 e 98); adultos são aqueles que, tendo mais de 18 anos, possuem  capacidade jurídica por se considerar que têm uso da razão (Can. 97). 7 A  pessoa maior tem o pleno exercício dos seus direitos (Can. 98).
         Cada idade é assinalada por um  ritual de iniciação. O primeiro tem como função permitir o acesso a  certos direitos e obrigações (Can. 96); os ritos seguintes,  primeira  comunhão, crisma, comunhão solene, casamento, servem de introdução a um  novo saber, e todos eles acontecem no fim de uma longa preparação  doutrinal, e cada um define um novo conjunto de relações dentro das  quais o indivíduo irá entrar. O baptismo, por exemplo, a
filiação e os direitos sobre a herança; a confirmação, a filiação ritual.
Quanto ao casamento, «o pacto  matrimonial, pelo qual o homem e a mulher constituem entre si a comunhão  íntima de toda a vida, ordenada por sua índole natural ao bem dos  cônjuges e à procriação e educação da prole, entre os baptizados foi  elevado por Cristo Nosso Senhor à dignidade de sacramento» (Can. 1055). *  Ora, sabemos que, no sacramento, Deus assiste aos esposos. O catecismo  ensina-nos, com efeito, que pela Sua Graça, Ele ajuda-os a resolver os  seus problemas, a pôr fim às dificuldades que encontram. Não sei se as  pessoas acreditam nisto verdadeiramente, mas a observação de terreno  mostra que jogam o jogo.
         A prova de que o casamento  católico é um contrato adaptado ao trabalho camponês encontra-se na  definição das suas propriedades consagrada no Cânone 1065 que na sua  versão de 1917 diz: «A propriedade essencial do casamento é a unicidade e  indissolubilidade. O objectivo principal do casamento é a procriação e  educação dos filhos, sendo a ajuda mútua e a satisfação da  concupiscência meramente secundários. Estes objectivos secundários estão  totalmente submetidos ao primeiro».**Este cânone é ensinado no  catecismo em termos menos esotéricos, e é repetido em numerosos sermões  ao longo de todo o ano, particularmente nas festas de S. José, Sagrada  Família e Advento, as quais celebram uma das formas de gerir a  fertilidade: a castidade da família. Este cânone recebe publicamente o  aval das pessoas por meio do controlo social (autoridade e  bisbilhotice), tanto em palavras como em actos: uma mulher sem filhos  não
foi abençoada por Deus e não é  completamente uma mulher; a situação de um homem que não engendrou pelo  menos um filho é ainda pior; oculta-se o nome da rapariga que se  compromete, enquanto que o seu futuro marido se vai iniciar com as  prostitutas, ou com outras mulheres adultas, casadas ou viúvas. É  suposto as mulheres não terem prazer no acto sexual, e os jogos eróticos  estão banidos entre esposos, embora o homem possa procurar prazer com   outras mulheres e, por vezes, com outros homens.
         A vida quotidiana cola-se de  forma tão perfeita às regras do casamento que poderia dizer-se que o  quotidiano é que foi recolhido e registado por escrito. Mesmo outrora,  quando a reprodução era um assunto resolvido entre um senhor e mulheres  sem terra, a mulher que dava à luz sem pai social nunca mais acedia ao  casamento. Numa amostra de 300 óbitos ocorridos em Pinheiros, entre 1864  e 1983, há 80 homens e mulheres, cujo registo indica que jamais se  casaram; 36 eram mães celibatárias que deram à luz 102 crianças sem pai  socialmente definido. 8
         Não havia, e não há, vergonha  alguma ligada à concepção sem pai; mas havia uma sanção social: o não  casamento. Tratava-se de um dos meios de realizar o contrato social: o  não casamento. Tratava-se de um dos meios de realizar o contrato  principal. Ora, desde que os camponeses se instalaram nas terras – em  1930, em Vilatuxe e em 1950, em Pinheiros -, desde que detêm a gestão da  reprodução já que são simultaneamente proprietários, maridos e irmãos,  desde que a população cessou de
vagabundear (vagi), a concepção  sem pai tornou-se vergonhosa: a genealogia deve aparecer claramente de  forma a saber-se quem tem direitos sobre a terra, enquanto era  relativamente vaga quando a reivindicação de direitos sobre a terra  passava por pessoas cujos bens eram inalienáveis. A reprodução sem pai  não é, contudo, um pecado, já que a fornicação o não é; tornar-se delito  apenas quando é possível provar em tribunal civil e eclesiástico, e é  por isso que fornicador e fornicadora permaneciam toda a sua vida na via  sacramental que conduz à Cidade de Deus, condenados talvez a  encontrarem-se entre os anjos numa das sete categorias definidas por  Tomás de Aquino, que forneceu o principal argumento a favor da  reprodução humana, argumento que os camponeses respeitam sem conhecer a  fonte: «os fundamentos do casamento são o direito divino (casamento), e o  direito natural (faz o bem e evita o mal), em consequência:
a)     A certeza quanto à descendência  fica comprometida pela poliandria que, por esse facto, deve ser  totalmente rejeitada. A poligamia entrava a educação dos filhos, a qual  não só é uma das finalidades do casamento em regra geral, como constitui  ainda a principal preocupação do pai.  A  unicidade  do  casamento   garante,  em   princípio, cuidados semelhantes e termos relativamente a  toda a prole;
b)    A igualdade das mulheres,  particularmente no que diz respeito aos direitos mútuos e ao amor, fica  diminuída pela poligamia; a mulher não é, nessas circunstâncias, mais do  que uma escrava e a sua dignidade fica rebaixada;
c)     Um amor dividido não poderia ser  tão intenso e duradouro como   um amor centrado num único objecto. Esta  razão toca também a indissolubilidade do laço conjugal e a educação dos  filhos;
d)    Os registos de baptismos provam que  a distribuição numérica dos sexos é mais ou menos igual, pelo menos em  tempo normal. Juntai a estas razões a igualdade social dos homens;  porque ter várias esposas sai caro e só os ricos se podem permitir esse  luxo» (Summa Contra Gentiles, III, e Can.124). 9
As razões avançadas por São Tomás de  Aquino, retiradas da vida quotidiana do seu tempo, provam que os homens  estruturam o seu raciocínio a partir de factos supostamente desejados  por Deus, mas que são na realidade absolutamente conjunturais. Contudo, a  conjuntura pode durar e o argumento, tão pragmático, perdurar com ela.  Foi o que aconteceu nas sociedades rurais europeias e na sua cópia fiel,  o campesinato latino-americano. Muitas outras orientações repousam  sobre este argumento, pelo que vou delinear brevemente algumas a título  de exemplos.
         Qual é o direito prioritário ou a  autoridade competente em matéria de casamento? «A união dos fiéis  releva não apenas do direito divino mas também do Direito Canónico;  salva a competência do Direito Civil sobre os efeitos meramente civis do  mesmo matrimónio» (Can. 1059). Segue-se a definição daqueles que estão  aptos para submeterem-se à autoridade competente: «Podem contrair  matrimónio todos aqueles que não estejam proibidos pelo direito»  (Can.1058). É esta a regra positiva do comportamento ideal médio; depois  vêm as regras de casamento que dizem respeito àqueles que o direito não  autoriza casarem-se mas que, apesar disso, podem unir-se. Sendo o  contrato considerado sacramento, há aqueles para os quais o casamento  não poderia aproximar da graça já que, por outras razões, estão já em  estado de graça, seja porque tenham já contraído casamento e o laço  conjugal não tenha sido declarado nulo, ou tenham pronunciado votos numa  instituição religiosa, ou ainda, tenham contraído obrigações morais  naturais, legais ou outras, em relação a terceiros (Can.1085 e 1088);  há, por fim, aqueles que receberam ordens sagradas (Can.1087). Em suma,  embora as proibições de casar, restrinjam os deveres de procriação para  alguns deles não retira no entanto de outras funções reprodutivas. Não  deve haver obrigação nenhuma que retire o dever sagrado de trabalhar  para os filhos.
         Uma vez que uma categoria de  pessoas é classificada como matrimoniáveis, o direito selecciona entre  elas e define as que têm possibilidade de procriar: um homem de 16 anos e  uma mulher de 14 podem casar-se com validade (Can.1083), sempre e  quando tenham autorização dos seus responsáveis. Conforme o Direito  Civil, essa autorização é necessária, na medida em que a maioridade, ou  seja, a plena capacidade para se exprimir livremente, é aos 18 anos (ou,  aos 21, no Código Civil de 1867, reformado em 1966; 1978, 1995 e em  1999 passa para os 18 anos novamente). A aptidão para reprodução tem  sido objecto de controvérsias que não posso tratar aqui, a não ser para  mencionar uma outra condição: a da maturidade exigida para o  acasalamento e a capacidade sexual, já que um estado de impotência  anterior e crónico invalida o casamento (Can. 1084). Levantam-se  igualmente dificuldades no que diz respeito à fé e à pertença, à Igreja  já que é invalidado o matrimónio entre duas pessoas, uma das quais tenha  sido baptizada na Igreja Católica ou nela recebida e não tenha  abandonado por acto formal, e outra não baptizada (Can.1086). Norma que,  do meu ponto de vista, se compreende perfeitamente sem mentirmos, que  qualquer sistema de crença é igualmente um sistema de administração dos  recursos, é um enunciado lógico da distribuição dos mesmos, e a  expressão ideal de que são as pessoas, o respeito, a autoridade  política, as hierarquias…, um sistema que tem em conta quem trabalha, em  que, etc. É, em suma, um raciocínio histórico, bem como filosófico,  explicado de forma etnocênctrica pelo grupo social que o adopta: os  teólogos, os canonistas, têm afirmado o risco de pôr à prova a fé de um  fiel, quer dizer, vê-lo renunciar a encarar o mundo sob uma determinada  perspectiva, apesar de que historicamente tenha sido colocado um  interdito sobre o casamento entre os judeus e gentios. Contudo, se o  parceiro adere à fé cristã, o casamento é autorizado; deste ponto de  vista o Código Canónico de 1983 é mais complacente que o de 1917, e  ambos são muito diferentes da Inquisição.
Digo isto, para sublinhar bem a ideia de  que estamos em presença de um conjunto de normas que servem para  organizar o trabalho com base numa lógica partilhada pelos membros de  uma mesma instituição, à qual a pertença é estritamente definida, e a  qual está no direito de impor obrigações.
É igualmente exigido que o casamento seja  tornado público com antecedência através dos banhos (Can.1067). É este o  meio utilizado pela cultura letrada para apelar à memória oral no caso  de existir um laço não registado entre as duas partes que possa anular o  casamento, facto que colocaria o casal em dificuldades se, por  denúncia, se viesse a descobrir posteriormente. Trata-se de uma  precaução em relação ao não registo pela memória escrita do conjunto de  relações múltiplas que cada indivíduo mantém na realidade, e que  ultrapassam a realidade das regras oficiais. Ora, a Igreja colocou-se a  si própria em má posição, instituindo regras que visam impedir o registo  de crianças ilegítimas pelo nome do pai, para evitar que adquiram  direitos sobre os títulos ou bens, criando assim um vazio na informação  respeitante à rede de relações.
         Na aventura que consistia  desenvolver os bens materiais, usando para isso a linguagem do bem estar  espiritual, permanecia aberta uma porta para a maior parte das relações  indesejáveis, acho que não permitem que as pessoas circulem entre elas e  pelas terras: o incesto.
         A administração e distribuição  dos recursos humanos no campo das técnicas, da terra ou dos títulos, é  pensada por meio de uma série de formulações negativas quanto aos grupos  de parentesco: os parentes são divididos em consanguíneos e afins, e  tanto uns como outros se repartem em linha directa de filiação em laços  colaterais bilaterais.
         A consanguinidade em linha  directa invalida qualquer casamento, quer os descendentes sejam  legítimos quer naturais (Can. 1091), da mesma forma que a afinidade em  linha directa. Quanto à linha colateral, a consanguinidade constitui  impedimento para o casamento até ao 4º grau incluído (Can. 1091), embora  a afinidade só invalide o matrimónio até ao 2º grau (Can. 1092). Como o  parentesco natural não é controlado pela Igreja e constitui uma  abundante fonte de trabalhadores, dele tenho conhecimento apenas pelas  pessoas envolvidas: é dito que a aliança nunca é autorizada se existirem  dúvidas sobre a existência de um laço de parentesco em linha directa ou  de 1º grau de colateralidade entre as partes (Can,1091). E, para que as  coisas sigam a lei do bom senso, a ordem natural é definida pelo  Direito Canónico com precisão, e proclamado urbi et orbi o  significado de consanguinidade e afinidade. A primeira, conta-se por  linhas e por graus: em linha directa há tantos graus como gerações ou  indivíduos, não tendo em conta o tronco comum, conceito este que  corresponde à forma germânica de computar o parentesco. Na linha  colateral, há tantos graus de consanguinidade como indivíduos de cada um  dos lados do tronco comum, estando este excluído do cômputo (Can. 108).  No que diz respeito à afinidade, o casamento só é inválido entre um  homem e os parentes consanguíneos da mulher, bem como para a mulher com   os consanguíneos do homem. Admite-se assim os laços de sangue do homem  se tornam, pela aliança os da mulher, na mesma linha no mesmo grau, e  vice-versa (Can.109). É ainda feito um esforço para controlar o  parentesco não registado, servindo-se da via da decência e da  conveniência pública: não pode realizar-se o casamento entre um homem  que tenha vivido com uma concubina, e uma consanguínea da concubina com  parentesco em linha directa de 1º e 2º graus, e inversamente para a  mulher (Can. 1093).
         Tais são os meios utilizados, as  asserções negativas, para obter consanguíneos de estirpe pura, os quais  se assemelham às regras que permitem substituir o padre para consagrar  um casamento se não houver clérigo disponível, ou se alguém está à beira  da morte sem ter deixado clara, pela via do sacramento, a sua  genealogia (Can. 116).
         Uma vez passados por este filtro  construído em nome da pureza da linha, os que possuem as qualidades  requeridas vão poder exprimir o seu consentimento e unirem-se. O  consentimento ao casamento é um acto de vontade pelo qual cada uma das  partes cumpre os compromissos, aceitando o direito exclusivo e perpétuo  sobre o corpo do outro, com o objectivo de realizar os actos conducentes  à procriação (Can.1051): Consensus facit nuptias.
         Estes princípios são ritualmente  ensinados aos noivos durante um período de tempo considerável; a sua  aplicação é, por outro lado, publicamente controlada pelo grupo, cuja  reprodução depende do cumprimento deste processo de circulação de  pessoa; e a vontade divina controla-o tanto em, privado como  publicamente pela confissão e comunhão.
         Este Código Canónico monolítico,  que se dirige a todos, necessita, contudo, de um grande número de  ajustamentos ao nível particular para que as pessoas possam fundar um  lar e trabalhar; e no domínio privado dos interesses, assim como no  domínio íntimo dos sentimentos, numerosos são, os factos que traem a  vontade divina e a sua voz canónica.
3. A reconstrução
         Bem pode acontecer, e retomarei  este tema, que o Direito Canónico seja a transcrição escrita de relatos,  de comportamentos recolhidos ao longo dos séculos pela Igreja e o  Império. Em Pinheiros, como denomino a São João de Monte, os numerosos  casos que provam o ajustamento das normas canónicas à vida quotidiana,  mostram também de que forma é necessário que os cânones autorizem tais  comportamentos.
         Comecemos pelas variações entre  endogamia e exogamia aldeã entre 1862 e 1983. A exogamia permite ser  mais respeitoso em relação ao direito já que afasta dos parentes,  enquanto que a endogamia obriga a casar dentro da parentela em graus  diversos. Entre 1862 e 1920, a maior parte das pessoas casavam para além  do quarto grau de consanguinidade. Noutras paroquias, embora aqueles  que contraiam matrimónio na paroquia o fizessem frequentemente em graus  de parentesco, que invalidam o casamento. Entre 1920 e 1950,  importaram-se muito maridos: as raparigas cujos irmãos, com o objectivo  de comprar terra, haviam emigrado para outros países durante vários  anos, desposavam homens de fora, e é por isto que a propriedade  recentemente adquirida, e sobre a qual a irmã tinha obrigações, senão  mesmo direitos, estava constantemente aprovisionada de bebés: o ciclo de  desenvolvimento doméstico, uma vez iniciado, permitia funcionar com  garantia de continuidade. Mas, entre 1970 e 1983, a troca matrimonial  tornou-se endogamica e um bom numero de casamentos entre indivíduos  aparentados foram contraídos. Sobre um total de 229 casamentos  celebrados (oficialmente) entre 1862 e 1983, 153 foram objecto de  dispensas de diversos tipos. Entre 1862 e 1875, assinalam-se oito casos  de jovens que casaram entre os 17 e os 20 anos; era a época em que  estava no auge a controvérsia entre liberais e católicos a respeito da  idade do consentimento imposto pelo Código Civil de 1867 (21 anos) e o  reconhecimento da dominação de facto da idade canónica fixada entre 14 e  16 anos. Entre 1877 e 1976, 63 casos necessitaram de uma dispensa de  idade. Com as reformas liberais que permitiram aos rendeiros comprar a  terra que trabalhavam, mais valia ser casado para fazer valer os seus  direitos e a idade do casamento passa de 26 e 30 anos a 18 e 20, em  média; há ainda 13 casos de dispensa de idade não consignados nos  Registos Paroquiais detectados na documentação pessoal que cada um dos  noivos deve fornecer.
         Durante todo o período – de 1862  e 1983 – um certo número de dispensas referentes à consanguinidade  foram concedidas: 10 para o 4º grau entre 1862 e 1910; 13 para o 3º grau  de consanguinidade entre 1873 e 1954; 9 para o 2º grau de  consanguinidade entre 1873 e 1950; 2 para o 1º grau de consanguinidade e  2º grau de afinidade e, por fim, 1 para o 2º grau de parentesco ritual.  Entre 1890 e 1972, 29 casais pediram dispensa de publicações  matrimoniais (Cân.1067) e 6 pessoas (quase todas ao longo do século XX),  pediram autorização para casar fora da paróquia, o que dá uma ideia da  mobilidade destes camponeses instalados, cuja identidade é atribuída  pelo baptismo na paróquia onde nasceram.
         O conjunto destes dados mostra  que, por um lado, muitos contratos são celebrados em conformidade com o  direito e, por outro, que o direito regulamenta o destino de certas  relações. Embora as estatísticas não tenham sentido nenhum num estudo  antropológico que se quer qualitativo, não é desinteressante notar que  os efectivos, por uma razão ou por outra, se repartem de maneira  uniforme: 50% dos casais contraíram matrimónio dentro do quadro  prescrito pelo direito e 50% pediram consentimento. Metade resolveu o  problema ela própria, e para a outra metade foi a Igreja que se  encarregou disso. É certo que isto apenas diz  respeito àquilo que é
oficial: já disse noutro lugar 10 que com  vista à reprodução, ou no processo de reprodução, se desenvolvem outras  alianças, a respeito das quais nem tudo me parece ainda de todo claro:  não sei o que nelas prima, se os interesses ou os sentimentos. Dito  isto, neste domínio em que o público toca o privado, poder-se-ia  arriscar concluir que uma união pode transgredir os interditos ideais e  oficiais, mesmo sem correr o risco de ser menos tolerada, já que a vida,  no sistema camponês de organização do trabalho, conduz frequentemente a  becos sem saída, como já fiz notar no início deste artigo. De facto, é  necessário distinguir três domínios: o público, o privado e o íntimo. Os  dois primeiros submetidos a regras socialmente aprovadas, que se  transformam com as novas circunstâncias. É exactamente o que se produz  quando as pessoas impõem a sua vontade acaba por ser aceite ou, pelo  menos, tolerada. Assim acontece com o incesto, a bestialidade e o acto  sexual com parceiros não oficiais. É este o motivo pelo qual o corpo  oficial de normas não cessa de se modificar: é necessário integrar,  passo a passo, os novos casos particulares que se apresentam ao longo  dos anos.
         Os motivos avançados para autorizar as dispensas apresentaram-se sobre forma de normas tais como:
1) Angustia loci, exiguidade do  lugar ou da cidade (não da paróquia) (Decreto Congregatio Fidelibus,  1876); este motivo, diz um comentador,  pode ser alegado por uma  rapariga,  mas não por  uma viúva, vivendo num aglomerado de  menos  de   1500  habitantes porque, esse  caso, lhe é difícil encontrar marido do  mesmo     estrato social;
2)     Actas feminae super adulta, idade relativamente avançada da rapariga;
3)     Deficientia aut incompetentia dotis, quando uma rapariga não possui dote nem bens e um parente aceita desposá-la ou dotá-la sobre certas condições;
4)     Quando um casamento entre parentes permite pôr fim a uma querela;
5)     A pobreza, especialmente no caso de viúvas com filhos;
6)     Em caso de gravidez decorrente de  relações sexuais com consanguíneos: o casamento permite reparar o dano e  evitar a desonra;
7) Periculum incestuosi concubinatus, quando parentes próximos vivem debaixo do mesmo tecto e estão em perigo eminente de concubinato;
9) Excellentia meritorum, quando  um fiel serve bem a fé católica,   combatendo os seus inimigos, pelas  palavras ou pelos escritos, ou ainda pela notabilidade do seu ensino e  virtudes. 11
Sem dúvida que o comportamento concreto  dos camponeses que tenho estudado não constitui um índice suficiente  para afirmar que a organização do casamento pela Igreja, aparentemente  estrita, não é mais que uma orientação geral à qual as pessoas se  submetem por pragmatismo, 12 seja por motivos de classe, seja para daí  retirar lucro, seja ainda porque estaria bem adaptada ao processo de  trabalho. Mas a lista dos motivos de dispensa aparece como um bom  repertório das manipulações às quais os noivos se podem entregar ou, por  outras palavras, das formas de controlo de que dispõem. Os casos de que  me servi aqui, permitem formular as seguintes questões: se a religião é  a expressão da lógica da reprodução e da produção quando e onde não há  teoria económica, e se o Direito Canónico é uma lista de comportamentos  entre os quais é lícito escolher, não será então a Igreja uma  instituição, cuja forma de governo é demasiado flexível,  para não pôrem  perigo a sua própria reprodução? Ou seria mesmo a reprodução dos  camponeses que ficaria ameaçada se a sua racionalidade não se investisse  numa memória escrita (arquivos, cânones), proferia em voz alta (padre),  que lembra o que cada um deve fazer em cada momento de um tempo que é  cíclico?
         A combinação entre organização  material e ideias escatológicas funcionou bem ao longo dos séculos,  facto que não se pode desligar do sucesso do Direito Canónico na sua  tentativa de cobrir toda a variedade de comportamentos humanos em  matéria de reprodução.
         Convém, contudo, fazer a  distinção entre moralidade da reprodução e factos materiais sobre os  quais ela repousa. A Igreja governa e acumula lucro sem trabalhar, são  os camponeses que criam a sociedade e as riquezas
que, durante o Antigo Regime, eram  transferidas para a Igreja e nobreza através da entrega dos excedentes e  que, hoje que o credo se tornou laico e a Igreja tradicional, continuam  a escapar-lhes através da legislação e do mercado. Os factos, esses,  são de outra ordem: seja qual for a nossa posição acerca do montante do  excedente retirado à classe que o produz, pessoalmente penso que se  deveria suprimi-lo. A História mostra que existe um laço muito estreito  entre o comportamento concreto que observamos e o código de conduta que  com frequência ignoramos, ainda que a ele tenhamos estado submetidos e  dele tenhamos sofrido as prescrições. Não é, contudo, correcto  ignorá-lo, não por razões de crença a crença é uma categoria do  imaginário, em consequência é um problema científico mas porque o  Direito Canónico, enquanto expressão positiva da realidade religiosa,  fornece às populações que estudamos um código de trabalho, pelo menos no  que diz respeito à fabricação de seres humanos e à distribuição quanto a  direitos e obrigações, títulos e funções, pelas terras e pelas pessoas.
BIBLIOGRAFIA
        Enquanto escrevia tinha em mente a seguinte bibliografia:
        A respeito do Direito Canónico em Portugal:
MATTOSO José, 1985: Identificação de um país. Ensaio sobre as Origens de Portugal 1096-1325, Estampa, Lisboa.
        Para a Espanha:
GARCIA Y GARCIA, Antonio, 1967: Historia Del Derecho Canónico, vol. I: El primer milenio, Salamanca, Instituto de História de la Teologia Española.
Sobre as relações entre Direito Canónico e direito positivo:
HESPANHA, António Manuel 1980: “O Jurista e o Legislador na Construção da Propriedade Burguesa Liberal em Portugal” in Análise Social, XVI (61-62), págs.211-236.
        Acerca da influência do Direito Canónico na forma das relações sociais:
GOODY Jack, 1983: The Development of the Family and Marriage in Europe. Cambridge, University Press Cambridge.
        Acerca da  influência da moral na organização dos grupos domésticos:
FLANDRIN, Jean-Louis, 1976: Familles. Parenté, maison, sexualité dans l’ancienne société, Hachete, Paris.
Acerca das relações entre o direito positivo e a organização do parentesco, hierarquias e poder:
HANDMAN, Marie-Elisabeth, 1983: La violence et la ruse. Hommes et femmes dans un village grec, Edisud, Aix-en-Provence.
ASSIER-ANDRIEU, Louis, 1981: Coutume et rapports sociaux. Étude anthropologique des communautés paysannes du Capcir, Editions du C.N.R.S., Paris.
        (Estes livros destacam a  importância das normas morais na celebração dos contratos e das  alianças, na educação das crianças dentro do contexto do que definem  como costume).
         Para uma comparação  intercultural, Godelier (1979, 1982, 1984) mostra como as ideias  organizam a vida material, o que coloca em questão o sentido marxista do  termo infra-estrutura:
         Acerca da influência do Direito Canónico no constitucionalismo ocidental:
AQUINO, Tomás de, (1267-1273) 1969: Suma Theologica, in Anthony Kenny (ed.), Aquinas: A Collection of Critical Essays, University of Notre Dame de Paris, Indiana.
TIERNEY, Brian, 1979: Church, Lawland and Constitutional Thought in the Middle Ages, Variorum ReprinsLondon.
Acerca da sua influência na cultura:
DELUMEAU, Jean, 1983: Catholicism between Luther and Voltaire: A New View of the Counter Reformation, Philadelphia, Burns & Oates.
1977: Le péché et la peur: la culpabilisation en Occident, Fayard, Paris.
        Para a crítica das hipóteses de Max Weber:
SAMUELSSON, Kurt, 1957: Religion and Economic Action, Heath & Co. Londres.
TAWNEY, Richard, 1959: Religion and the Rise of Capitalism, Harcourt Brace Jovanivich, Londres
        Acerca do marxismo e religião:
NESTI, Arnaldo, 1975: “Gramsci et le religion populaire”, Social Compass, XXII (3-4), págs.343-354.
PORTELLI, Hugues, 1974: Gramsci et la question religieuse, Anthropos Paris.
MARX, Karl, (1844). 1977: “Contribution to the Critique of Hegel’s Philosophy of Right”, in Karl Marx: Selected Writings, Edited by D.MacLellan, Oxford University Press.
ENGELS, Friedrich, (1878). 1975: Anti-Dühring, Foreign Languages Publising House, Moscovo,
        Para uma abordagem teórica:
WILSON, Brian, 1966: Religion in Secular Society, Watts, Nova Iorque
WORSLEY, Peter, 1968: The Trumpet Shall Sound, McGibbon & Kee, London.
Documentos e publicações oficiais:
Arquivo Distrital de Viseu, 1661-1868 – Livro de baptismos, casamentos e óbitos.
Arquivo Paroquial de Senhorim, 1911-1983 Róis de confessados e Status Animarum.
Código Civil, 1867-1966 – 1999. Porto Editora.
Código de Direito Canónico, (1917) 1983 Conferência Episcopal Portuguesa, Lisboa.
Decreto Congregatio Fidelibus, 1876.
Primeiros Elementos da Doutrina Cristã, s.d., Pio X, União Gráfica, Lisboa.
Registo Civil de Nelas, 1911-1983 – Livros de Baptismos, Casamentos e Óbitos. 
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*Publicadoin Droit et Société, nº.5, 1987. (Versão em francês traduzida a partir do original em inglês por Marie-Elisabeth Handman. Traduzido para português por Filipe Reis).
*Publicadoin Droit et Société, nº.5, 1987. (Versão em francês traduzida a partir do original em inglês por Marie-Elisabeth Handman. Traduzido para português por Filipe Reis).
1 – Raúl Iturra, Strategies in the  Domestic Organization of Production in Rural Galicia, (NW Spain),  Cambridge Anthropology, 6 (1-2), 1980, págs. 88-129. Versão portuguesa,  in Ler História, nº1, 1980.
2 – Raúl Iturra, ”Factores de reprodución  social en sistemas rurales: trabajo, produción de productores y pecado  em aldeas campesinas”, in Arxiú d’Etnografia de Catalunya, nº.6, 1988.  (incluído no presente livro págs. 45-63); Raúl Iturra, “Non marriage as  Strategy of Reproduction in a Portuguese Rural Village (1864-1983)”,  Tourtour, Foundation Les Treilles, 1986, 22 págs. Inédito, publicado no  presente livro págs. 141-152, Raúl Iturra, “Religious pratices in  Portugal”, in Facts and Facts and Figuras about Rural Portugal, Lisboa,  Sociedade Portuguesa de Estudos Rurais, 1986, págs. 137-152. (Publicado  no presente livro págs., 31-43).
4 – Jack Goody, The development of the Family and Marriage in Europe, Cambridge, C.U.P., 1983.
5 – Raúl Iturra, Factores de reproducción social …, art. cit.; idem, Non Marriage as a strategy of reproduction …, op. cit.
6 – F. C. Copleston, Aquinas, Harmondsworth, Penguin Books, 1955.
7 – Esta classificação de pessoas segundo  a idade não repousa unicamente nas suas aptidões fisiológicas para  procriar, mas sim especificamente sobre a aptidão para entender, tomar  decisões ter responsabilidades sociais. As ideias de Max Weber de que os  protestantes disporiam de mais recursos lógicos para a reprodução do  capital, pareceu-me ser um estereótipo retirado da vida quotidiana que  ignora as trocas internacionais. (Max Weber, The Protestant Ethic and  the Spirit of Capitalism, Londres, Unwin Paper Back, (1904, 1985). Há  versão em português: “A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo”,  Lisboa, Presença, 1983.
8 – Qualquer criança nascida de uma  mulher não casada é tecnicamente denominada ilegítima- no Código Civil  de 1867 até as suas reformulações em 1966,1978, 1995 e 1999-, ou seja,  tendo sido produzida sem as condições legais requeridas. Estas  condições, fixadas pelo Código Civil de 1867, em Portugal, são apenas o  meio de definir as relações entre uma criança e os bens do seu pai.  Entre os camponeses há sempre um reconhecimento social da paternidade  manifestada no facto de tornar-se padrinho, empregador, benfeitor da  criança ou da sua mãe. Entre os proprietários é diferente: na minha  amostra de Pinheiros não me parece haver mais mães celibatárias do que  na paróquia de Vilatuxe. Nas duas aldeias, a exposição (rodas dos  expostos), foi praticada, mas ninguém sabe quem são os pais das crianças  expostas. A este respeito, cf. B. O’Neill, Proprietários, Lavradores e  Jornaleiros. Desigualdade Social numa Aldeia Transmontana, Lisboa, D.  Quixote, 416 págs.
9 – Chas, Augustine, A Commentary of the New Code of Canon Law, Londres, Herder Book (1918-1922), 1919.
10 – Raúl Iturra, “Marriage, Ritual and  Profit: the Production of Producers in a Portuguese Village  (1864-1983)”, Social Compass, XXXII (1), 1985, págs. 73-92. Incluído  neste livro págs. 101-127; Raúl Iturra, Non marriage as a strategy of  reproduction, Inédito, incluído no presente livro, pág. 141-152.
11 – Chas, Augustine, A Commentary on the  New Code of Canon Law, Londres, Herder Book, 1918-1922; William Conway,  Problems in Canon Law Classified Replies to Practical Questions,  Dublin, Browner Nolan, 1956.
12 – Duvido que se possa chamar a isto fé  ou crença, salvo se a considerarmos como uma espécie de campo  congelado. Para compreender as razões do pensamento escatológico, é  necessário conhecer a teologia, ou, por outras palavras, a forma de  raciocinar de um espírito que crê; receio bem não ser mais que um  antropólogo, ou seja, de apenas conhecer o raciocínio de um espírito que  entende, e a partir desse facto cria, as relações sociais que estuda.
*Nas transcrições de cânones usou-se a versão do Código de Direito Canónico, 1983, Conferência Episcopal Portuguesa, Lisboa.
**O cânone 1065 da primeira versão do Código de Direito Canónico de 1917, encontra-se desdobrado nos cânones 1055 e 1065 na versão de 1983.
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