Este texto é a reconstrução por  escrito das minhas palavras sobre a reprodução no IV Congresso de  Antropologia de Espanha, realizado em Alicante. Ao trabalhar o argumento  que apresentara com base num esboço, outras ideias levaram-me um pouco  mais longe em relação à exposição original. De facto, este texto é fruto  do estudo que venho desenvolvendo sobre racionalidade, reprodução e  estratégia, para o qual me sirvo de dados sobre camponeses europeus,  estando, portanto, entrelaçado com o argumento que debato em vários  outros textos dispersos pelo mundo. É, por isso, que no final, incluo  uma lista deles que, oxalá, pudessem juntar-se a este para sua melhor  compreensão. Em qualquer caso, o que pretendo aqui é inspeccionar as  ideias e factos que, não sendo das aldeias estudadas, fazem parte da  etnografia que um antropólogo europeísta deve consultar e que é possível  encontrar na História, na lei positiva e canónica, na religião como na  doutrina, Igreja e fiéis, assim como na economia teórica e conjuntural. É  este o contexto dos factos da lógica camponesa que, na sua dimensão  própria, está registado nas relações sociais e na tecnologia, que são os  textos do saber oral e da sua cultura.
          Estou agradecido a Dolores  Comas, Aurora González e Jesús Contreras, amigos e companheiros da causa  antropológica, pelo convite ao seu simpósio e pela extraordinária  simpatia com que me trataram. Várias semanas depois cheguei a Cambridge  para escrever durante todo o verão (a única época do ano em que nós  professores podemos calar-nos e pôr por escrito o que diremos aos  estudantes no próximo curso), estando agradecido ao meu amigo e colega  Alan Macfarlane, que me proporcionou um lugar calmo para trabalhar no  celibatário King’s College. Como sempre, escrevi este texto com a cabeça  cheia das perguntas dos meus estudantes de licenciatura e doutoramento,  tentando encontrar resposta para as mesmas. Este ano académico, que  terminou um Junho de 1987, viu licenciar-se o primeiro grande  contingente de antropólogos que temos formado no departamento; alguns   deles assistiram a este congresso em Alicante, e todos me encheram de  questões estes anos. Oxalá lhes tenha respondido e oxalá venham a ter  muito êxito. A eles dedico a presente conferência-texto, com o carinho  do seu velho professor.
 1. O problema
         Quando um estudioso da  reprodução social se centra na produção de produtores, como tenho feito  nos últimos anos, acaba por preocupar-se com duas coisas: explorar as  avenidas laterais que compõem o conjunto dos seus dados e encontrar uma  metodologia apropriada para argumentar. No que diz respeito à primeira  questão, já o tenho afirmado outras vezes (1985), o celibato é parte do  sistema de produção de produtores , daí o título deste texto.
  O celibato faz parte do sistema, não  porque o casamento de uns impeça o de outros, nem porque para que alguns  casem, outros deixem de fazê-lo; nem porque nos sistemas de herança  indivisível os herdeiros excluídos não tenham recursos e fiquem célibes.  De facto, a produção da sociedade, como gosta de dizer o meu amigo  Maurice Godelier, é algo mais complexa do que os arranjos quantitativos  com que nós investigadores simplificamos a vida das pessoas nos nossos  textos. Há um pensamento complexo que fabrica uma rede de relações onde  os motivos do amor familiar e os da transmissão de bens e circulação de  pessoas podem estar imbricados com motivações, como Bernard Vernier  (1984), Hans Medick (1984) e Jean Louis Flandrin (1976), entre outros,  nos têm recordado ultimamente: emoções, desejos, paixões, conveniências.  Contudo, como estes e outros autores reconhecem, não são estes os  únicos elementos que condicionam as decisões, pois qualquer grupo social  tem de substituir os membros que perde por morte e treinar os que  adquire por nascimento. Além disso, ao longo do ciclo de desenvolvimento  entre a vida e a morte, os grupos sociais vão resolvendo como combinar  pessoas entre si e com as coisas, para que a história se desenvolva e  continue. Este simples facto apresenta-se também em relação ao saber: o  processo de substituição dos que morrem, de produção dos que nascem e de  combinação de pessoas entre si e com os bens, faz parte do saber  acumulado dos grupos, o qual reside na memória das pessoas que deste  modo se reproduzem.
          O saber como, quando e com quem  se fazem as coisas é um dos bens que deve ser preservado e penso que faz  parte do raciocínio com que se tomam as decisões nas aldeias  camponesas. Nestas últimas, o saber é normal transmitido e guardado em  textos que não são os habituais da cultura letrada (os livros e a  hermenêutica), e o conteúdo do saber é demasiado complexo para ficar  retido na memória de uma só pessoa, sendo transmitido e preservado pela  divisão das funções sociais, como gosta de afirmar Maurice Godelier  (1982). Isto tem uma consequência que intervém na formação de um grupo  de célibes, como discute Caroline Brettel (1986), o qual não se explica  unicamente pelo sistema demográfico, que mostra uma variabilidade  histórica. Penso também que a falta de homens ou mulheres para casar não  é um problema real, é apenas estatístico, do modelo do cientista. Pelo  contrário, os grupos sociais, especialmente em sistemas de trabalho  camponeses onde produzir filhos é tão importante como produzir milho ou  batatas, esforçam-se ao máximo por juntar os casais que renovarão cada  geração. Uma coisa é certa: sem herdeiros do saber nada pode continuar.
          Como tenho argumentado diversas  vezes (1985), na aldeia de Pinheiros, as mulheres importam homens para  fazer filhos, enquanto os seus irmãos (potenciais maridos de outras),  emigram para comprar terra. O ciclo de estabelecimento da propriedade  camponesa não teria sentido sem um ciclo doméstico de reprodução humana;  e prova é que os grupos de camponeses têm subsistido isoladamente  através dos séculos, e que a lei e os factos vão modificando as  condições do casamento (quer dizer, da forma oficial de produzir  pessoas), para que a produção não fique ameaçada. Na vida real nunca  faltam possibilidades de fertilizar e conceber, pelo contrário, o  problema de homens e mulheres é como evitar a gravidez para ter apenas  prazer. Deste modo, as correlações entre terras e pessoas podem  resolver-se de formas distintas na vida real: em Vilatuxe, a paróquia  galega que tenho estudado nos últimos anos, legalmente um dos filhos  herda dois terços dos bens, mas, de facto, os outros filhos mantêm os  seus direitos sobre a casa enquanto procuram outros recursos de trabalho  para subsistir e às vezes ajudam os seus irmãos herdeiros do campo. Em  Pinheiros,  aldeia que tenho reconstruído regressivamente nos seus  últimos trezentos anos, apesar de a herança ser universal, há sempre um  filho que fica com todos os bens. Esta é uma forma cultural de restituir  o morgadio.
          Creio que a questão é outra,  seja o sistema de herança de um tipo ou de outro, o campo como sistema  de trabalho está, desde há trezentos anos, na Europa, subordinado ao  trabalho industrial, mais ou menos agravado pelos cobradores da renda:  patrucios (Galiza), ou morgados (Portugal), Cabezoleiros (Galiza) ou  Condes (Portugal). Ora, a subordinação do trabalho à produção de renda  deixa sempre todos pobres, ou, pelo menos, sem dinheiro, bem necessário  para a produção no capital. Dependentes, em consequência, das batatas e  do milho como do próprio sémen e do saber distribuí-lo. «Por que há  célibes?», caberia perguntar. Porém, a causalidade é um argumento  impossível nas Ciências Sociais. É mais interessante perguntar, como há  célibes? A minha resposta é que a reprodução oficial de seres humanos  está em relação, tanto com a estrutura de relações do Estado-Nação  dentro da qual vive um grupo social, como com a sua situação conjuntural  respeitante ao passado e às soluções adoptadas. É este o tema que  desejo discutir agora. Antes, contudo, apresentarei os dados das  paróquias que estudo e que usarei para o meu argumento; em seguida  discutirei as hipóteses interpretativas que me têm ocorrido.
 2. O lugar
         Entre 1974 e 1978 estudei as  estratégias reprodutivas da paróquia de Vilatuxe, na Galiza, tendo por  isso residido mais de um ano na aldeia de Carretera. A partir de 1982  estudei a freguesia de Senhorim, em Portugal, tendo residido entre 1983 e  1985 numa das suas aldeias que tenho denominado de Pinheiros. Para  propósitos comparativos apenas serve a diferença na organização do  processo de trabalho e tecnologia empregue para fins tão diversos como  produzir leite em Vilatuxe e vinho em Pinheiros. Quanto ao resto, nos  detalhes das modalidades em matéria de herança, assim como na memória  dos santos, são muito distintas. Apesar disso, não pode haver grandes  diferenças culturais hoje em dia entre duas paróquias rurais da Europa,  cristãs, católicas, luso-galaicas, com organização parental do trabalho,  passado senhoril e enfitêutico, etc.. Conjunturalmente, a história  regressiva que emprego como método de estudo para analisar a transcrição  na reprodução social mostra-me os diferentes aspectos da organização do  território como resultado do estabelecimento dos camponeses. Contudo,  sob as condições de trabalho multinacionais que a organização industrial  da cultura defina, o processo de trabalho incarnado pelos camponeses  parece ser similar no estilo, ainda que variem algumas tonalidades na  partitura.
          Penso que as variações têm a ver  com a capacidade de recursos com que cada aldeia pode contar em  momentos ou épocas diferentes da sua história. Quanto ao resto, a  teologia, que primeiramente organizou a racionalidade europeia e a  teoria económica depois, tem gerado sistemas legislativos orientadores  do comportamento, assim como ideias doutrinais (católicas ou laicas), de  forma que a população acaba por ter os mesmos comportamentos em locais  diversos. As cronologias das revoluções liberais em Espanha e Portugal  têm anos de desfasamento entre si, mas os objectivos acabam por ser  similares. O mais importante é que o sistema reprodutivo do capital  acaba por salvaguardar a forma parental de trabalhar das aldeias  camponesas, assim como o saber que orienta o comportamento. Assim tem  acontecido em África, na Índia e no Pacífico Sul (América Latina), onde o  trabalho como força organizada ficou intacto, tendo-se simplesmente  importando o campesinato e o inquilinato. * Em todos estes lugares o  trabalho assalariado e a mercadoria foram introduzidos, competindo com a  racionalidade parental religiosa que, contudo, sobreviveu em vários  níveis de estrutura social.
          Pode-se afirmar que as ideias  que individualizam cada pessoa pela lógica do contrato e na perspectiva  da igualdade, introduzem um ideário no campo que as pessoas acolhem com  desejo de ter terra, a necessidade de controlar as suas condições de  vida e a própria racionalidade católica de vida e morte individuais. A  compra de terra pelo campesinato é a materialização da lógica contratual  e a dinamização da individualidade, dinamização que tem um forte  limite. De facto, as condições técnicas do trabalho repousam, até hoje,  nos deveres parentais, na vizinhança, na solidariedade do trabalho e na  ideia de pecado, de prémio e castigo, no fundo. Encontra-se outra  limitação à individualidade configurada na reforma agrária do século XIX  ibérico, nas condições técnicas do trabalho, que permitem desenvolver  desigualmente os recursos industriais que começam a expandir-se. Seja na  extinção dos morgadios ao longo do século XIX (que atingiu a freguesia  de Senhorim como o resto do país); e sua transformação em propriedade  camponesa após a república em 1911; seja na lei de redenção dos foros do  começo do século XX em Vilatuxe (assim como para toda a enfiteuse em  Espanha), pode verificar-se que as ideias, a política e conveniência  económica do liberalismo – essa ideologia da revolução francesa que  laicizou as ideias católicas e aburguesou a administração da nobreza,  catapultou os camponeses para o mercado sem intermediários nem dinheiro,  e entregou à vida rural toda a responsabilidade económica que a  legislação e a acumulação do capital até então previam para os  representantes do trabalho camponês – os proprietários industriais e a  indústria.
          Assim, o celibato, como parte da  reprodução, ocorre numa ou em várias épocas históricas e varia com a  definição da relação entre quais pessoas têm quais terras e quem dirige o  processo de trabalho na sua organização estrutural: a Igreja ou o  Estado. O pai de família apenas dirá para se levantarem às 5 ou às 8  horas para trabalhar, ou decidirá quem e quando deverá abandonar a casa.  O que permanece constante ao longo do tempo é o facto de o campo ter um  organizador central e externo do trabalho: a religião sistematiza os  direitos e deveres; o parentesco define os lugares no processo  reprodutivo; a legislação especifica o que a religião deixa em traços  largos; o conhecimento gera-se e transmite-se com técnicas orais, e a  técnica produtiva do camponês, que dinamiza a solidariedade, serve de  memória do processo de trabalho e fornece as linhas de circulação de  técnicas não produzidas no campo. Finalmente, a base das trocas de  trabalho que suplementa as diferentes capacidades técnicas dá origem à  circulação de pessoas e instrumentos.
          Do conjunto, parece-me capital a  questão das técnicas para gerir e transmitir o saber. O cuidado que em  Vilatuxe e em Pinheiros se tinha em manter e conservar a relação que se  tivesse com quem sabe matar porcos, fazer palheiros, consertar arados,  melhorar a saúde de vacas e burros ou, enfim, cuidar das tarefas que  exigem um conhecimento especial, sempre chamou a minha atenção. Nas  festas e refeições, os especialistas sentavam-se ao lado do especialista  da cultura letrada; o padre que representa o poder central eclesiástico  e estatal sentava-se ao lado do antropólogo de serviço, o escriba da  aldeia, um comentador das histórias da sua história. Este cuidado não se  manifesta apenas no prestígio ou na dádiva; normalmente havia ao lado  uma pessoa mais nova para observar, para repetir os gestos, daquilo que  Meyer Fortes (1938) chamara aprendizagem por imitação ( minha tradução).  A questão é que, nem em Vilatuxe nem em Pinheiros, se têm sistematizado  por escrito os textos, as ideias com que se trabalha e transforma a  matéria. Parece óbvio dizer isto, mas por óbvio, nunca escrito. Na  memória escrita destas duas freguesias só contava a reprodução humana,  com os laços de parentesco oficiais. Os arquivos são o complemento local  da lei nacional; assim como, mais recentemente neste século, a escola  unifica o saber com base nas hierarquias universais: a família, a  prática, a propriedade e a utilidade. O resto do saber, circulava em  ambas as paróquias pelo conjunto das pessoas, distribuído por  especialistas, como analisei nos meus estudos sobre a ajuda mútua  (Iturra, 1978; 1987; 1988).
          A ajuda mútua une os parentes  entre si, quer dizer, aquelas pessoas com um interesse material na  prosperidade do outro, e com um interesse moral (porque o contrato  simbolicamente expresso, mesmo que não se entenda, constrange ao seu  cumprimento). É um elemento estruturante das trocas, como já Mauss  (1924) nos disse, e eu tenho observado no meu trabalho de campo. Unem,  pois, as pessoas parentes entre si, com base nas capacidades que podem  desempenhar na tarefa. Os trabalhos de ajuda mútua realizam-se quando o  grupo acomete tarefas diferenciadas com todas as suas complexidades.  Desta forma, cada grupo doméstico reparte os indivíduos pelos distintos  trabalhos de acordo com o que se espera de cada um, de acordo com o seu  treino. Assim, dia a dia se vão definindo as aptidões pessoais que, em  suma, constituem as capacidades do grupo, o limite das suas forças, o  ponto de partida para procurar a ajuda dos outros. Quando recenseei os  instrumentos de trabalho e estudei os grupos de entreajuda, pude  comprovar que a reunião de mão-de-obra opera em torno de alguém que sabe  da totalidade do trabalho, mas que conhece também o que cada  participante pode dar de si mesmo para finalizar a tarefa.
          A preservação do saber através  da técnica oral é de tal ordem, que o representante da cultura letrada  que guarda a memória do povo, o padre, é celibatário. No outro extremo,  os seres tidos como mais ignorantes são também celibatários, mas estes  têm o encargo social de fazer trabalhadores: as mulheres sem terra,  assalariadas por conta de outrém, uma categoria praticamente extinta na  actualidade. O conjunto das histórias de vida destes indivíduos e de  outros diferentemente posicionados na hierarquia, explicaria o processo  geral do celibato na reprodução; contudo, vou primeiro examinar as  situações gerais que contextualiza o processo. Apresento, para já,  alguns dados para a caracterização do lugar.
          Em Vilatuxe, em 1974, estudei as  relações entre as quinhentas e oitenta pessoas que viviam nas catorze  aldeias da paróquia, a maior parte proprietária das suas leiras de  terra, que não excedam 2 ha ou 3 ha. Os cento e trinta e um grupos  domésticos que analisei no presente etnográfico (ainda que tenha  retrocedido duzentos anos na história da propriedade e em casos de  parceiros e proprietários), podiam classificar-se entre os que não  tinham propriedade rural, os que combinavam esta actividade com  trabalhos noutros sectores produtivos, os que se dedicavam à agricultura  com preponderância para o consumo e os que se haviam especializado na  produção de leite. O estudo de duzentos casos de entreajuda mostrou-se  como ela se organiza por meio de parentes e especialistas repartidos  entre todos os grupos, sendo cada categoria excluente das outras, dado o  diferente tipo de especialidade; até ao ponto que as especialidades  reformulam o critério do parentesco, de forma que em primeiro lugar está  o saber e depois procurar-se ou fabrica-se a ligação entre o grupo de  produtores especializados. No caso da agricultura para o uso, com uma  divisão do trabalho bem evidente, o critério preponderante é a  quantidade de pessoas que faziam uma actividade não diversificada  (plantar e não semear, por exemplo).
          Os cento e trinta e um grupos  domésticos eram, na sua maioria, antigas famílias foreiras, com apenas  quatro casas com um passado de grande propriedade. Do conjunto, cento e  sessenta e sete adultos eram casados, enquanto que trinta e seis eram  celibatários (quinze homens e vinte mulheres). Entre estes celibatários  estão as pessoas que, dado a sua idade, se pensa que não virão a  casar-se. Assinalo isto porque estou a referir-me a dois conceitos  delimitados pela sua funcionalidade, que definem condutas específicas no  processo reprodutivo: casamento e celibato. No campo, as pessoas casam  para ter substitutos e produtores que fiquem oficialmente ligados aos  bens, o que a lei prevê através de um contrato civil. O celibato, pelo  contrário, é parte do processo reprodutivo que produz filiação  desvinculada dos bens, como já defini noutro texto (1987), sistema que  tem mudado desde que o filho do celibatário pode ser herdeiro, desde que  pai e mãe sejam declarados por escrito nos arquivos do Registo Civil, o  que é obrigatório em Portugal mesmo quando os filhos são incestuosos.  Entre as mulheres celibatárias, oito tinham filhos de proprietários que  se haviam casado com proprietárias, sendo todas elas jornaleiras pobres;  de todas elas podiam contar-se dez filhos sem pai legal nem reconhecido  como pai biológico (eufemismo que define de outra forma o pai social  quando não há forma de defini-lo).
          O caso de Pinheiros posso  detalhá-lo mais para diferentes épocas, já que elaborei os dados  retrospectivamente, com o objectivo de poder comparar a aldeia com a  conjuntura da história económica de Portugal, o que não havia pensando  para Vilatuxe. Em Pinheiros, em 1983, estudei as relações entre as  pessoas das sessenta e oito casas aí existentes e destas com os seus  antepassados. Até meados do século XIX, quer dizer, até ao ano em que de  momento acaba a minha história da aldeia, as terras estavam vinculadas  em morgadio. Os descendentes da família morgada, os seus bisnetos, ainda  viviam aí e são os maiores proprietários do conjunto dos grupos  domésticos. Deste conjunto, a maior parte cultiva vinha na terra  comprada com dinheiro da emigração, alguns trabalham terras de outros  como meeiros ou rendeiros, outros vivem simplesmente na aldeia e  trabalham fora. Uma aldeia relativamente isolada do resto da paróquia,  situada na montanha. tem sido cento e vinte e três grupos domésticos  através do tempo, com duzentos homens que tiveram filhos entre 1864 e  1983. Em 1700 havia sete casas, entre 1800 e 1900, vinte e quatro, e  hoje as sessenta e oito que mencionei acima. Os cento e vinte e oito  grupos domésticos distintos e isoláveis que se têm sucedido na aldeia  produziram seiscentos e cinquenta e dois bebés contados pelo registo de  nascimento. Entre estas datas houve duzentos e sessenta e nove  casamentos e noventa e oito pessoas que nunca se casaram de facto: de  trezentas e quarenta e sete pessoas que morreram entre 1862 e 1983,  oitenta nunca se casaram (trinta e seis homens e quarenta e quatro  mulheres). Os célibes vivos, dez homens e oito mulheres, já  ultrapassaram todos a idade em que a funcionalidade reprodutiva manda  casar. Do total de mulheres célibes ao longo do período, trinta e seis  produziram cento e três bebés. No caso dos homens quais são os seus  filhos?
          Nesta paróquia, muito endogâmica  nos cento e trinta anos de história que até agora tenho processado, sei  que alguns destes pais passaram, em 1862, a ser os padrinhos, o mesmo  que, tal como fui informado, se passa hoje. Discuti noutro trabalho  (1987) este assunto da figura do padrinho enquanto forma de estabelecer  um parentesco ritual que faz parte do parentesco denominado  consanguíneo. Porém, o tema não me preocupa agora, pois o padrinho,  benfeitor ou truão, é uma figura social acreditada.
          É possível que as crenças  camponesas de que o sémen é portador de vida e a propriedade de recursos  é portadora de subsistência, faça sempre especular e procurar o pai (o  que sugere explorar as ideias sobre a honra). Contudo, nos factos,  torna-se absolutamente irrelevante saber quem maculou a honra de uma  mulher caso querer vingá-la, como nos conta Garcia Marquez (1985). O  mesmo sucede com o pai que não se dá a conhecer: quem poderia, afinal,  saber quem é, se o campo íntimo das pessoas não se conhece e pode haver  mais homens para além do amante denunciado? O pai poderá existir ou não;  se não, existe o padrinho. O que interessa agora é saber como é  possível ser-se celibatário em lugares onde as pessoas se casam sem  terem terra, pois têm padrinho para os filhos sem pai e casam a filha  desonrada.
 3. Uma hipótese de interpretação factual
         Ocorrem-me algumas ideias para  explicar o processo. É certo que se tenta apagar os rastos de  fertilidade numa relação sexual, quando não é conveniente produzir  rebentos, assim como é certo que em épocas críticas se procura através  de todos os meios aumentar a densidade demográfica. Se a reprodução  humana é uma combinação de fertilidade, recursos e saber, a forma mais  drástica de fazer circular estes factores é o casamento que, de forma  ordenada e gráfica, vai ajustando as pessoas, bens e saberes, subtraindo  para a reprodução um certo número de homens e mulheres através da  celebração do seu mútuo consentimento. Outro extremo drástico é  relacionar a possibilidade de produzir descendência com os recursos,  concentrando-os e tornando-os reprodutivos da maneira definida pelo  contexto histórico dentro de uma classe ou estilo de vida. Contudo, este  argumento seria simplesmente de classe: os que têm casam com os que têm  e os que não têm não casam. A segunda parte da afirmação não parece ser  verdade porque os que não têm também se casam, como já afirmei outras  vezes e isso constitui inclusivamente garantia para ter contrato de  parceria, foro ou simplesmente para trabalhar sob a autoridade paterna:  todo o dinheiro no mesmo lugar e muitos dos que o têm não casam. Estes  têm a possibilidade de gozar uma completa satisfação, permanecendo na  casa paterna, emotivamente satisfeitos entre irmãos, especialmente na  pequena propriedade em que, apesar da tecnologia ser um factor de  solidariedade, o limite da posse desenvolve vínculos dentro dela e  contra outros.
          Para o nosso entendimento  positivista e cartesiano é duro aceitar que a posse de terra com árvores  e cores vivas, vincula as pessoas. É um argumento baseado nos  interesses e emoções que é difícil de sustentar. Tudo o que sei é que a  família morgada de Pinheiros casou todos os seus filhos e filhas com  iguais sociais, tivessem bens ou não. Um deles, por exemplo, casou em  1860 com a mestra local, cujos bens eram as letras e ter ficado grávida.  Em Vilatuxe, os filhos e filhas de caseiros casaram sistematicamente  com caseiros, os proprietários com proprietários, etc.. Houve, na  paróquia galega, um proprietário que teve filhos com a filha do caseiro  da sua casa, o qual, na época em que os proprietários eram demandados  por causa da terra, defendeu o senhor e casou com ele a filha. A  possibilidade de um casamento fora de categoria, como acontece em certos  momentos da História, só confirma, a meu ver, a estrita categorização. O  facto da totalidade das mulheres celibatárias que tiveram filhos e os  criaram (embora à margem da forma oficial, vinculada), não terem bens e  que os pais conhecidos sejam todos homens com recursos, mostra que a  categoria existe e funciona como uma vantagem para a mulher que não  tenha outros bens a não ser a possibilidade de fazer um filho que a  possa proteger, como tenho argumentado outras vezes. Por outro lado,  qual é o objectivo do casamento dos que não transmitem bens nem  conhecimentos? No caso dos proprietários, como estão orientados pela  letra da cultura cristã, que os seus irmãos se casem, faz parte do  prestígio que às suas posses se acrescenta (é a regra drástica de não  arriscar a relação com o poder se o grupo social defende a reprodução  não ritual). Para quem já está abaixo, deixar escapar a paixão é um  benefício. Quem não sabe nem tem, só pode ter filhos, se é mulher; se é  homem, só tem trabalho.
          Por outro lado, não são apenas  os factores da paixão que devem ser analisados. Os grupos domésticos  produzem filhos para o trabalho, de onde o prazer da cópula é o  incentivo que quebra as resistências a não querer ter filhos.  Especialmente no século XIX e início do século XX, a morte durante o  parto era frequente. O trabalho do campo para a mulher grávida é muito  pesado. O cuidado dos filhos diz-lhe respeito, bem como à outras  mulheres da sua família e vizinhança, se estão perto e têm tempo. A  maternidade é uma acumulação de problemas que são adiados, evitados,  espaçados. Tenho observado que, através dos anos em ambas as paróquias,  nas famílias camponesas com menos recursos casa um dos filhos e os  outros, sendo celibatários, cuidam dos sobrinhos. Na época do foro e  arrendamento, o celibato ocorre sobretudo entre as mulheres, a maior  parte jornaleiras, sem terra. E entre algumas filhas de proprietários.  Creio que na época da propriedade vinculada não havia razão para que os  homens se casassem com mulheres desprovidas de recursos ou alguma  habilidade. Na época da compra da propriedade, pelos anos cinquenta  deste século, em ambas as freguesias, toda a mulher que pudesse ter  filhos e soubesse tratar dos negócios correntes do grupo doméstico era  uma mulher casadoura. De facto, os grupos que passaram do pagamento da  renda à  compra de terras, precisam de uma continuidade no  desenvolvimento da propriedade e da habilidade da força de trabalho dos  filhos. É certo que vários grupos de irmãos não se casaram porque com o  trabalho de todos tinham-na em quantidades suficiente mas também é  verdade que os filhos dos seus irmãos casados seriam os seus  continuadores. Na época da propriedade vinculada, a habilidade para ter  filhos é a mais importante e o senhor cuida da sua fertilidade; na época  da propriedade camponesa ter filhos vem depois de saber manipular os  negócios. Ter filhos requer condições em cada época, as quais quero   agora analisar, em relação ao que se exige de cada homem e de cada  mulher na propriedade vinculada e camponesa: o saber.
 4. Saber reproduzir
         Em 1888 morria sem sacramentos  J.F., antigo proprietário; em 1901 morria a sua mulher e entre 1882 e  1950, todos os seus filhos que eram celibatários. Amélia, a última a  morrer, foi registada como mendiga; os outros morreram também pobres e  como jornaleiros. J. F. enlouquecera no percurso da sua vida, e os bens  que tinham foram desaparecendo. A família, uma ramificação dos morgados  locais, não pôde casar os seus filhos: nem pelo estatuto, nem pelos  bens, nem pela razão. A história diz que o filho de um louco, louco pode  ser também; e não saber gerir os bens é a maior das loucuras. Seja qual  for a causa, negar os sacramentos a uma pessoa significa fechar a porta  a tudo o que dá sentido à vida: a eternidade. Ou, pelo menos, pôr em  dúvida a possibilidade de eficácia da via sacramental para atingir o  outro mundo, porque não há uma razão, um atributo definido pela teologia  para ser pessoa a ter capacidade neste e no outro mundo. Sem querer  aprofundar ainda este assunto que reservo para o próximo ponto, quero  apenas notar agora que, privado da razão, o antigo proprietário morre   como coisa; e que os seus filhos não se casam temendo-se da sua  capacidade de discernir, de cuidar dos bens. Noutro caso, as senhoras  A.., R. e O. J., de avançada idade, respeitadas pelos vizinhos, que  viram emigrar os seus filhos que tiveram sem marido. Como respeitada é  também a memória da Sr.ª. J. e da Sr.ª Jo., seja pelos próprios filhos  concebidos de diversos homens, seja pela lembrança das pessoas. Que a  Sr.ª. J. teve o seu último filho depois de enviuvar é coisa que apenas  se conta ao antropólogo e não se comenta entre as pessoas. As duas  mulheres têm mais de 80 anos, as outras morreram no começo do século XX  com quase 80 anos cada uma. As quatro eram jornaleiras, filhas de  jornaleiros, que no seu tempo causaram, nas respectivas casas, o  escândalo da gravidez celibatária. Creio que há que deter-se agora em  apenas duas questões: uma, a da idade associada à sabedoria, à paz e à  calma, o respeito por quem em breve será uma alma e que sabe graças à  experiência acumulada, o que cobre com credibilidade actos antes  condenáveis de uma pessoa. A segunda questão é a seguinte: se as  jornaleiras têm sido classificadas como pessoas para todo o serviço e no  último escalão da hierarquia da aldeia camponesa, não deixa por isso de  haver um juízo moral.
          Pode afirmar-se que existe um  ensino do comportamento transmitido pela via do sagrado e do ritual,  como tenho discutido noutros textos, que não produziu efeito na vida  destas pessoas. Não souberam cuidar dos seus corpos para a reprodução  vinculativa. Não é por serem jornaleiras que têm filhos pela via da  reprodução celibatária, ainda que todos os filhos de mulheres  celibatárias tenham como mães unicamente jornaleiras. Mas também há as  que têm filhos de forma vinculada, seja com outros jornaleiros, seja com  proprietários com que casaram. As mulheres que, sem se casarem, têm  filhos, acabam por nunca mais se casar: o património dos seus corpos foi  delapidado no que se supõe ter sido a loucura do desejo e, como J. F.  que não recebeu o sacramento da unção, não há homem que com elas queira  anuir pelo sacramento do matrimónio. Saber reproduzir é saber cuidar dos  recursos da forma que as ideias médias de convivência social  aconselham, sistematizadas, elaboradas, ensinadas e preservadas no saber  que cada indivíduo possui.
          É certo que as jornaleiras, numa  sociedade hierarquizada como a do campo, permanecem mais expostas a  transgredir e os factos assim o indicam. Mas também é certo que se  chegam a tornar-se num modelo de virtudes, como no campo se diz  frequentemente, a sua reprodução será vinculativa, quer dizer, será  através de contratos com descendência e parentesco e com ligação aos  bens reconhecidas pelas pessoas, já que então se ajusta ao prescrito  pela cultura letrada, pela doutrina, pela lei, pelo poder. A questão não  está no juízo moral derivado do conceito de pecado e da ideia segundo a  qual casar-se é mais honroso. Ainda que seja assim que a questão se  apresenta nos termos do quotidiano, o que estou tentando estabelecer é  que a reprodução celibatária está também relacionada com o saber não só  de uma técnica que se transmite, como ainda dos recursos básicos com que  a matéria é transformada a partir das ideias que se possuem: neste caso  a terra e o corpo. A nós antropólogos, que chegámos às aldeias na época  em que a celibatária já morreu ou é velha, parece-nos que o bem dizer  acerca da senhora nunca permitiu a existência de máculas do seu  comportamento. Contudo, para um sistema de trabalho que se baseia no  parentesco como forma de distribuir os direitos e as obrigações, a  presença da reprodução celibatária é um risco e é evitada nos factos e  nos preceitos. Se acabam por ser transgredidos, o castigo final e a não  incorporação da mulher no sistema estruturado de trabalho, tanto ela  como a sua descendência, existindo outra via – a do parentesco ritual e  de facto – para recolher as consequências da fornicação.
          Saber cuidar do património  (terra, corpo) não é algo exclusivo dos homens proprietários ou das  mulheres jornaleiras. Tenho visto casos de herdeiros ou proprietários  que são bruxos, alcoólicos ou com vocação para a promiscuidade, o que  impede o seu casamento – e, de facto, qualquer outro tipo de aliança,  inclusive a entreajuda. Os homens têm fama de ser bons reprodutores são  bastante bem acolhidos pelas raparigas casadoiras, seja pela virilidade  que exibem, seja porque há prova de que o seu sémen é boa semente. Creio  que para este aspecto Brandes (1980) dá boas pistas ao dizer que entre  os camponeses existe a crença de que o sémen dá a vida. Não é apenas um  tema relacionado com os Kiriwina (Malinowski, 1927 e 1929) ou os Baruya  (Godelier, 1982). Até porque os Don Juan locais só se assemelham ao  modelo de Adónis pelo tributo de abundante secreção que os conduz à  paternidade múltipla, facto que acaba por torná-los atraentes aos olhos  do grupo local que precisa manter um fluxo permanente de descendentes.
          Porém, o saber reproduzir é,  evidentemente, contextualizado, não só ligado ao sexo como também à  época de que se fala. Já discuti acima as condições que observei em  Vilatuxe para ser herdeiro: outrora, saber do trabalho da terra; hoje,  saber da especialidade que a terra produz e de aritmética para entender  as contas do banco, a Nestlé (Vilatuxe) ou a cooperativa de vinhos  (Pinheiros). Há um terceiro saber que se junta ao de cuidar do  património, terra e corpo, constituído pelas ideias com que se trabalha.  Este terreno é delicado por dois motivos: um, porque enquanto  antropólogos rurais queremos para não aparecer idealistas, e neste  domínio é difícil; outro, porque as aldeias que estudamos em Portugal e  Espanha são diferentes das aldeias suíças, francesas do Norte e do Sul,  italianas e até das da polónia e Hungria, no sentido em que em todas  elas, e não só nas inglesas, existe uma organização mais estabelecida do  trabalho (pessoas, terra, tecnologia, conhecimento). Em Vilatuxe, como  em Pinheiros, deparamo-nos com camponeses que trabalham à antiga, isto  é, como quando eram eles próprios meeiros ou enfiteutas; ou então,  fazem-no da forma como conseguem, visto não terem recuperado ainda o  raciocínio da propriedade por falta do bem reprodutivo central, o  dinheiro, que no seu sistema é lentamente entregue em preço e em salário  (dos produtos, da emigração). Por outro lado, estes trabalhadores à  antiga são pessoas, cujo conhecimento técnico se tem desenvolvido  activamente positivamente, com base num conjunto de ideias acerca de  como produzir bens. Estas ideias não se aprendem quando adulto. É  possível ver que o saber é uma orientação difícil de substituir na lenta  marcha das mudanças; a maquinaria que tenho visto trabalhar nos campos é  sempre introduzida ou pelos filhos dos camponeses, ou pelos que tiveram  treino mais perto do mundo da indústria (assunto que discuto em detalhe  noutro texto, 1987).
          A tecnologia é um conjunto de  ideias que se inscreve nas ferramentas que há que saber ler para  movimentá-las, fazê-las outra vez e repará-las. Estas ideias têm uma  dimensão simbólica pautada por ciclos litúrgicos e de santos, onde o  saber se confunde com o crer e onde estas lógicas não se experimentam  mas sim repetem-se. Com elas, existem os trabalhadores desenvolvidos,  como são chamados os que têm experiência. A conformidade cede em  benefício dos que possuem experiência, cujo trabalho é mais rápido,  seguro e eficaz. Estes heróis conseguem mais mulheres do que aqueles que  vão ficando para trás. A reprodução tem uma técnica que se aprecia  antes de se querer ter filhos com um homem ou uma mulher de forma  vinculativa, e essa técnica não vem nos manuais. Os  celibatários do  presente, que encontrei vivos durante o meu trabalho de campo em  Vilatuxe e em Pinheiros, pertenciam quase todos a esta última categoria,  e também muitas mulheres, apesar de neste caso intervirem outros  factores. Por vezes são os seus próprios irmãos, já que o casamento com  um grupo familiar que trabalha principalmente para o uso traz para casa  tipo de tecnologia antiga (sejam terras, a criação dos filhos ou o que  se espera da comunicação entre as pessoas). E, apesar de restar sempre a  alternativa de cortar os laços familiares, usada numa pragmática nova  forma de classificar o parentesco, o elemento propriedade surge como  vinculativo, aproximando, definindo quem deve trabalhar em conjunto.  Essa classificação de que tenho falado noutros textos (1987 e 1988)  contém o limite da base material para a qual foi criada: sem  funcionalidade, não serve. Neste caso existem duas possibilidades:  reclassificar pessoas na estrutura de relações porque transportam  consigo um saber próprio, artesanal, que é necessário em diversos  lugares (como reparar, curar, compor, semear, temperar, remendar,  possuir); ou então tornar-se proprietário absoluto das condições de  trabalho de solidariedade parental.
          Tenho observado uma tendência  para o casamento entre pessoas com saber igual e um isolamento dos  saberes diferentes, que se reflecte na estrutura do celibato, da mesma  forma que o celibato (especialmente o reprodutivo), reflecte a estrutura  social com base na propriedade dos recursos produtivos. Porém, esta  observação provém de um facto que pode controverter-se em situações de  transformação das formas de trabalho e de coexistência de formas  reprodutivas, pois tenho visto como homens e mulheres se casam noutras  tecnologias e poucos voltam às suas casas ou ajudam nas tarefas que  antigamente eram comuns, a menos que existam interesses produtivos  ligados. Contudo, nestes casos, tenho visto também como os produtores  com técnicas mais modernas cortam laços resolvendo as questões  patrimoniais em vida (tipicamente o que acontece nas reformas de  concentração de parcelas, ou da colonização em Espanha, ou dos arranjos  patrimoniais privados em Portugal), enquanto que os que possuem técnicas  mais antigas, com a calma que o seu tempo permite e dada a necessidade  de obter ajuda da técnica mais avançada, tornam-se clientela dos  modernos, como tendo descrito nos meus textos sobre a entreajuda (1978;  1988). Ninguém se quer casar com pastores de ovelhas, mesmo que sejam  considerados muito ricos, porque é um trabalho que arrebata da vida  quotidiana, do ritmo dos outros. Nem ninguém se quer casar com homens  que, sendo pobres, nunca quiseram sair da aldeia. As mulheres preferem  os operários industriais, profissão à qual vários jovens de Vilatuxe e  Pinheiros se converteram: possuem parte de, ou estão em contacto com o  bem reprodutivo principal. Há que dizer que os homens procuram obter  esse tipo de trabalho; ou melhor, industrializam a produção rural, o que  só se torna possível ao suplementar com  emigração sucessiva e a  realização de outros trabalhos (preços agrícolas não pagam o tipo de  industrialização que se faz nas pequenas propriedades precárias, sem  capital).
          Isto leva-me ao último aspecto  do saber reprodutivo, a emigração. Sair e voltar à aldeia criou outro  tipo de razões para o celibato: pode observar-se na estrutura do  celibato um bom número de emigrantes. Como também, é claro, na estrutura  do casamento. Há, contudo, uma diferença: alguns emigrantes não são  celibatários porque casaram antes de sair (parta a mulher com eles ou  não), ou porque pactuaram um casamento após ter sido já pactuada a troca  de alguns bens entre o noivo e a noiva. Entre os casados que partiram  sozinhos e os que partiram com a mulher há também diferenças nas suas  formas de trabalho, de que falarei noutro momento. A emigração do  celibatário coloca-o em lugares onde é definido como trabalhador  residente temporariamente, que não entende nem aceitas as formas  culturais aí existentes. Às vezes, há grupos de compatriotas  co-residentes. No regresso, o emigrante fala outra linguagem, não  consegue facilmente uma mulher ou, como surge frequentemente nas  histórias de vida, não aceita com facilidade uma mulher da aldeia. E as  de fora não querem ir para lá trabalhar. Tudo parece passar-se como se a  circulação do camponês pela indústria estrangeira ou pelas cidades do  seu país, fosse dando conta das duras condições que terra e parentesco  significam enquanto objectos de trabalho e meios de convivência. Creio  que neste ponto do saber reproduzir há que salientar que o património  que se reproduz constitui o elemento central da decisão sobre quem virá a  ser dotado para que oficialmente procrie. Terá relações vinculativas  quem saiba manipular conforme as ideias médias da sua época que, da  mesma forma que as tecnologias e a emigração, variam mais rapidamente  que os estereótipos que as pessoas movimentam para decidir quem casa e  quem não casa, e que os textos que informam tais decisões. A estes  últimos quero referir-me de seguida, pois penso que são parte daquilo  que influi no processo reprodutivo que também acaba no celibato.
  5. Uma hipótese de interpretação contextualizada.
           As temáticas parecem complexas  no campo da reprodução, onde vive o celibato. A Igreja e o Estado, em  conjunto, com maior preponderância de um ou de outro, em épocas diversas  da sua história, sistematizaram cuidadosamente a forma de conduzi-las,  na doutrina e na lei. Como beneficiários, de formas distintas, do  produto do trabalho e da experiência humana sobre o mundo acumulada no  tempo, Igreja, nobreza e Estado preocuparam-se em detalhe pelas técnicas  da cultura letrada, para orientar a reprodução. Seja no direito  germânico preponderante, usado nas áreas que tenho estudado até ao  século XX e que inspirou o Direito Canónico de hoje, bem como no Direito  Romano usado desde que Napoleão introduziu, em 1867, um Código Civil  escrito na base das ideias da Enciclopédia e da Revolução Francesa,  submetem a construção das relações parentais a normas estritas  inapeláveis e aos sistemas do contrato. No final, penso, a experiência  de conhecimento pragmático da vida quotidiana passou a um campo  arquétipo de leis que acabam por reflectir a realidade porque a impõem e  porque prevêem excepções a si mesmas quando uma nova realidade surge.  Tratei mais exactamente da orientação do casamento através da lei e da  teologia noutro artigo (1987); igualmente, abordei noutro lugar como a  taxinomia dada pela doutrina dessa forma fixada nas ideias, existe para  classificar homens e mulheres consoante possam ou não gerar reprodução  vincular. Quero, agora, examinar o conceito de razão que informa o  tecido das relações de parentesco e, por fim, de trabalho.
          A Summa Theologica (1267-1273),  derivada da tradição aristotélica, preocupa-se pelo conceito e Tomás de  Aquino sistematiza as qualidades e as idades do que os indivíduos podem  fazer em relação às pessoas, às coisas e à divindade (a garantia do  contrato, como gosto de dizer).  A classificação foi recolhida pelo  Código de Direito Canónico de 1917 e laicizada antes pelo Código Civil  de 1867. Ambos fazem uso de uma via ritual diferente para estabelecer as  sucessivas autoridades e emancipações das pessoas e seus bens: dos 0  aos 7 anos classificam-se os infantes, de 14 a 16 (homens e mulheres),  os púberes, a partir dos 21, os adultos (idade variável na legislação  dos últimos anos). A lei canónica e a civil preocupam-se  em detalhe, de  forma casuística diria eu, da capacidade que as pessoas têm para ser  responsáveis pelos seus actos e para administrar os seus bens e,  eventualmente, os dos outros. Até há relativamente pouco tempo, as  mulheres, ainda que tivessem idade adulta, perdiam a capacidade para  administrar, casando-se, ficando ambos os patrimónios apenas nas mãos da  autoridade marital.
          Quando a lei que regula a vida  social (gerando inclusivamente as autoridades letradas que podem aceitar  contratos matrimoniais, tutorias, curadorias, etc.), se preocupa pela  razão, interessa-se por dois tipos de capacidades: primeira, a de  procriar, segundo, a de administrar e acrescentar os bens reprodutivos: a  terra e o conhecimento. Quer dizer, a Igreja e o Estado têm-se  preocupado em cuidar a inteligência e a memória, a capacidade de  lembrança, que é a capacidade de aprender, de saber e, portanto, de  compreender e, assim, trabalhar e transmitir. Quando na vida quotidiana o  herdeiro é escolhido de entre os filhos que têm mais capacidade para o  trabalho agrícola, seja porque é o melhor de entre vários, seja porque  in absentia dos outros aquele que fica passa a ser o melhor e por isso  fica. O que os pais fazem é reconhecer a maior capacidade de raciocínio  entre várias, e instituem esse reconhecimento casando-a em casa, quer  dizer, dando-lhe uma mulher (ou um homem) e património; o que os pais  fazem é avaliar uma capacidade e dotá-la. É evidente que a capacidade é  conjuntural, pois as formas de trabalho mudam com o tempo; e as  capacidades variam com as técnicas usadas. Porém, existe uma capacidade  absoluta ou não, que é a de estar dotado de razão; uma segunda é  compreender e saber qual é o objectivo do matrimónio e como chegar ao  coito e conduzir a educação dos filhos; uma terceira é cuidar, alimentar  e prover material e moralmente a prole; uma quarta , básica, engendrar,  e uma quinta, radical, ter ou não um património e habilidade de  trabalho. Assim, estão proibidos de casar os privados de razão, os que  não compreendem os objectivos do matrimónio, os imoralmente capacitados,  os vagabundos (antigamente, através de leis especiais, também os  pobres), e os impotentes para fertilizar (prova só possível  ex-post-facto). Estes elementos têm sido recolhidos e feitos lei pela  autoridade letrada e com tal autoridade têm sido devolvidos ao povo.  Pode perguntar-se como Flandrin (1976) até onde estão os camponeses  preparados para aceitar (ou, diria eu, para saber), para respeitar tudo  isto. É uma resposta do campo histórico muito difícil de argumentar com  os dados que estou a usar e no espaço que tenho, porém há uma forma,  diria eu metodológica, de aproximar-se.
          Se, como pensam os antropólogos,  Deus não existe e é uma expressão simbólica assumida como verdade pelas  pessoas que estudamos, mas não incarnada nem materializada em nada  visível, então nenhuma das prescrições que em nome de Deus se ordenam  (ou da sua versão laica europeia, a razão), tem outra fonte que não seja  a prática histórica, a experiência das pessoas. Neste caso, existe um  segundo passo no argumento: a experiência das pessoas no plano produtivo  e reprodutivo fiz que só sabendo (com a inteligência e com o corpo em  caso de doença), pode continuar, para uns, a possibilidade de trabalhar  (fazendo filhos, transformando a matéria); e para os outros, a de não  trabalhar mais do que na sistematização da experiência dos demais na sua  relação com o processo de trabalho e a tecnologia, no seu papel de  recolher e anotar a prática destes processos. Aqui entra a terceira  parte do argumento: a experiência criada através do tempo e acumulada  nas leis, primeiro existe entre os próprios indivíduos que a criam, pelo  que a conveniência de dotar alguém com bens e cônjuge é uma decisão  presente no conhecimento dos outros; sejam os padres, os potenciais  cônjuges, etc., incluindo o celibatário potencial que, avaliando as suas  possibilidades, decide ficar só, ou, pelo menos, não casar.
          O saber reproduzir que esbocei  no ponto anterior, é, provavelmente, o melhor aferidor das  possibilidades de casar que uma pessoa tem, seja com alguém da sua  aldeia, seja importando alguém; este é o melhor indicador que podemos  analisar quando queremos saber como acontece o processo reprodutivo,  seja no casamento, seja no celibato. Além disso, suprime dois vícios  argumentativos: o primeiro, o de que património em terra e matrimónio  são equivalentes. Eu diria que, tanto para os herdeiros únicos de terras  como para os de herança divisível, o casamento é necessário para poder  fundar o ciclo de trabalho doméstico que caracteriza tudo o que não é  industrial, embora não explique todas as opções, tal como não o fazem o  celibato, que existe sempre mesmo não sendo percentualmente maioritário,  nem o casamento dos deserdados do sistema, nem a reprodução fora do  casamento com dotação de bens e de uma parentela estabelecida,  ritualmente através do baptismo, e não pelo ritual do matrimónio. Neste  ponto há que recordar que qualquer parentesco é estabelecido  socialmente, até o consanguíneo, como se pode verificar na via  sacramental de iniciar o parentesco, ou nos filhos adúlteros e  incestuosos que acabam com todas as classificações ao manter relações  sexuais com alguns dos seus parentes mais proibidos. Esta ideia de  adequação património-matrimónio também não explica a mutável situação  histórica do campesinato europeu em relação aos contratos de posse ou  propriedade da terra. O argumento do saber reprodutivo retira um segundo  vício que me parece existir no nosso trabalho quando se explicam os  processos das relações sociais: o teísta. Parece-me que, por vezes, o  antropólogo não recorda que a existência de Deus é uma questão debatida  nos argumentos de tipo teológico, e que a ciência social da nossa época  tende a argumentar segundo a via positivista. Com a crença, a religião  popular, a não consideração da experiência humana na criação cultural,  deixamos caminho para o argumento de que alguma dignidade é a autora das  normas e prescrições da cultura letrada. Temo que não saímos do nosso  próprio sistema cultural ao não considerar a estruturação do  comportamento como resultado de uma lógica pragmática derivada das  crenças existentes num criador não humano de uma certa ordem. Digo isto  apenas para enfatizar que a crença é somente o ponto de partida do que  temos de explicar e não o ponto de chegada que se narra; e, por fim, a  aceitação ou a recusa de um indivíduo para o casamento ou para  celibato  é resultado daquilo que o grupo social sabe acerca de para que serve  cada um dos seus membros, garantindo que o decidido está certo por  achar-se sancionado pela palavra de fora, em nome de um argumento  irrefutável, porque irracional: a existência de uma autoridade divina,  que depois se laiciza no Estado que continua com a característica da  divindade, a despersonalização alcançada burocraticamente. Isto conduz  ao último passo do argumento: seja a Igreja-nobreza, seja o Estado ou a  Igreja, todos têm mantido uma atitude quase militar na sua relação com o  povo; os representantes do saber letrado, cujo conhecimento é certo e  fixo e pode ser demonstrado através da grafia e argumentado  hermeneuticamente, chegam a todos os recantos das aldeias sob a forma de  jurisdições. Aí, esteja o camponês preparado ou não para aceitar ou  para saber, o representante do saber condena ao casamento ou ao celibato  as pessoas. Não obstante, diria eu, isto tem êxito na medida em que  coincide com as próprias estratégias camponesas, de pessoas que sabem  reproduzir, para obter terra por contrato, seja de enfiteuse, parceria,  arrendamento ou propriedade.
          Este argumento contextual é  apenas um percurso indicativo pelas possibilidades que podem influir na  criação do celibato. Tenho argumentado que existe uma coincidência  quanto aos critérios que o saber oral contém no respeitante a quem e o  quê é reproduzido, os quais são vigiados de perto pelo saber letrado que  tem uma jurisdição sistematizada na lei e na doutrina, garantida pela  divindade. Será então que a efectividade, a paixão, o desejo, o amor não  têm importância? Quais são as histórias de celibatários que me o  permitem afirmar? Advirto, antes de passar a alguns dados, que a  etnografia só interessa aqui enquanto resultado de um tema mais  preocupante que é o do governo social do conhecimento.
 6. A reprodução e os sujeitos
          Até agora tenho argumentado que  o celibato faz parte do sistema reprodutivo, enquanto processo de  orientação de um saber que vive no conjunto do grupo na medida em que é  memorizado pelos indivíduos de forma diferente. O celibatário possui um  conhecimento que o obriga ou lhe permite estar desvinculado da  reprodução vinculativa, o que é identificado e socialmente reconhecido  pelo grupo, sendo por isso recolhido pela lei e pela doutrina, a morada  da cultura letrada. Sobre os tipos possíveis de conhecimento, argumentei  nos pontos anteriores, e espero desenvolvê-lo mais detalhadamente  noutra ocasião. Aqui, quero argumentar com casos e especialmente com o  conhecimento social, que me parece ser a fonte principal dos processos  reprodutivos e por fim da criação de celibatário. Os meus celibatários  do passado estão arquivados sob as epígrafes de mãe solteira ou mau  administrador – dilapidadores potenciais ou de facto de terra e corpo –  ou insuficientes na dinamização das suas possibilidades. Os  celibatários, que estudo no presente, podem falar deles próprios e das  suas condições e, com a lista na mão, vou tentá-lo. Os dezoito que hoje  vivem em Pinheiros (oito mulheres e dez homens), têm um número  heterogéneo de condições que os caracterizam. Talvez seja melhor afirmar  que estão colocados em diferentes momentos do ciclo de fixação do  campesinato aos recursos produtivos. Também é possível dizer que, no  processo reprodutivo da aldeia, estão inseridos em circunstâncias e  condições diferentes. A maior parte deles são proprietários de terra que  compraram e dos instrumentos que utilizam; há os que emigraram e os que  não; as mulheres nunca partiram para outros países, nem para nenhum  outro local do mundo a não ser a própria aldeia. Um deles não tem outra  condição para além de ser idiota desde o nascimento. Do conjunto, dois  homens tiveram filhos (cujos padrinhos são os seus irmãos), e duas  mulheres também. Estas condições comuns ordenam-se de forma diferente  quando se olha para as particularidades de cada indivíduo.
          Os homens emigrantes mais  velhos, que hoje têm mais de 50 anos e são irmãos, estiveram na América  Latina durante mais de quinze anos. Eram filhos de um parceiro local e  membros de uma família de oito irmãos: quatro deles estavam casados  quando ambos emigraram, enquanto que duas irmãs mais velhas do que eles  não estavam. Estes quatro, até à idade entre 20 e 30 anos, constituíam o  grupo de trabalho dos seus pais meeiros. Os seus irmãos mais velhos,  que também foram trabalhadores dos seus pais durante um momento do ciclo  doméstico, forma-se casando com filhas de proprietários locais, aos  quais substituíram na idade avançada e na morte, acrescentando essas  propriedades com o dinheiro da sua emigração. Os dois irmãos compraram  terra enquanto estavam emigrados, que as suas irmãs iam trabalhando com  os pais velhos, até à morte destes. Diferentemente dos seus irmãos que  obtiveram propriedades através do casamento, os emigrantes  conseguiram-no através de um outro tipo de contrato, a compra. As suas  irmãs, entretanto, acediam à mesma terra por meio do parentesco e as  presumíveis prestações hereditárias que segundo a lei operam entre  irmãos sem sucessores (ainda que é possível que o segundo motivo não  fosse de todo o explícito para ninguém; o primeiro, ao invés era claro  para todos). Em conjunto, os quatro irmãos estabeleceram-se com terras,  enquanto deixaram de ser celibatários; as irmãs não podiam trazer nem  filhos para as terras dos irmãos, pois isto não era condição para a sua  aquisição, uma vez que os outros irmãos casados haviam já tido filhos  que os quatro celibatários foram apadrinhando, e que serão os seus  sucessores no saber e no trabalho reprodutivo. As irmãs, além disso,  como contam as pessoas da época em que eram jovens e como eu vi nos seus  60 anos de hoje, estiveram sempre ocupadas, descuidadas e desgrenhadas,  sem graça nem para usar sapatos nem para sorrir, exaustas do trabalho.  Com o passar dos anos e com o regresso dos seus irmãos, o grupo  doméstico passou a ser uma unidade que come em casa dos pais falecidos  há anos; as irmãs dormem nesta casa, e os irmãos numa outra afastada; e  andam todo o dia de corpo curvado na terra. No conjunto, as suas  necessidades reprodutivas estão asseguradas dentro das condições de  trabalho que conheceram ao longo da vida, duras, e, pelo menos agora,  não subordinadas a ninguém: nem pais nem patrões. Os irmãos, durante a  emigração e hoje em dia quando há feira na cidade, habituam-se a ter  relações sexuais com  prostitutas; as irmãs e as suas emoções são um  mistério para mim, e são pouco importantes para o povo. Andam curvadas  sobre uma terra comprada nos anos em que a casa grande local vendia os  extremos da propriedade, os lugares menos irrigados, quando se começou a  formar o mercado interno de terras e ainda não se discutiam muito as  condições; o peso do trabalho concentrou a sua vida em faze-la produzir,  a sua única fertilidade pessoal, se é que algum dia pensaram nisso. O  seu grupo de trabalho para as tarefas pesadas é a família extensa, os  seus sobrinhos.
          Os outros irmãos celibatários,  que têm mais de 60 anos, constituem um outro caso diferente: um irmão  com um defeito no pé que o faz andar apoiado num cajado e as suas duas  irmãs. Vivem os três em casa dos pais, situada em frente da irmã que se  casou com um homem que não tinha terras. Os quatro irmãos herdaram a  propriedade dos seus pais e tios, nunca emigraram e os filhos do seu   irmão casado, em conjunto com os de outro irmão casado que é pastor, um  grupo de trabalho suficiente. Os dois tipos de grupos celibatários de  condições diferentes, pertencem a um tipo de agricultura que é provável  que desapareça, mas que, enquanto dura, representa o peso do mundo sobre  os ombros dos indivíduos, injectando na memória desde há mil anos. Na  transição, que em Pinheiros se começou a operar a partir dos anos 50,  quando todos este irmãos eram jovens entre os 18 e 25 anos, já existiam  as alternativas de trabalho fora ou dentro da agricultura. Nenhuma  propriedade que não estivesse acompanhada de uma vantagem em condições  de vida, era suficientemente atractiva para motivar o matrimónio. A  própria qualidade dos membros casados da aldeia o diz: os que aí estão  eram antes, eles ou os seus pais, meeiros ou jornaleiros, enquanto que  os filhos dos proprietários são médicos, professores, de carreira  bancária ou eclesiástica.
 Existe ainda um terceiro grupo de  celibatários: são quatro irmãos que têm outros cinco casados e com  filhos na aldeia, que exibem características diferentes. São filhos de  um matrimónio de jornaleiros de grande fertilidade. Os quatro emigraram  nos últimos tempos, quando os preços de venda da uva à cooperativa  vinícola eram mais baixos e uma antiga casa proprietária vendeu as  terras de menor qualidade. Os irmãos, abertos os mercados europeus de  trabalho, trabalharam e trabalham em países industrializados, adquiriram  maquinaria para lavrar as terras e mantêm hoje essa actividade  agrícola, subvencionada com o dinheiro da emigração. Não voltariam à  aldeia, treinados como estão em trabalhos que exigem esforço corporal,  mas a política monetária de Freedman ou de Chicago tem tido um efeito  pragmático nas suas vidas, sentido na instabilidade dos seus postos de  trabalho; por isso investem em terras que os seus irmãos casados e com  filhos (seus sucessores) trabalham. Um desses irmãos é pai de um filho  de uma das mulheres celibatárias, e o seu irmão e irmã são os padrinhos  da criança. Um quarto e último caso de celibato é o de um homem, filho  de mãe solteira e pai de uma criança, que não reconheceu como sua;  depois de emigrar trabalhou com os seus tractores as terras da sua mãe e  as suas que comprou; não voltou a partir, nem fala muito com os  vizinhos. À mulher, mãe do seu filho, deu um considerável pedaço de  terra, enquanto se assegura que o filho é seu e não de outro, já que a  existência de outros três filhos de pais diversos lhe dera azo a  dúvidas. Este conjunto de celibatários faz-me pensar que as diferentes  formas da sua inserção no saber reprodutivo, a segurança da sua produção  através da família, maquinaria e um filho a confirmar, podem ser os  elementos que exigem o celibato em conjunto com o matrimónio, pelo menos  nestes casos. Existe, portanto, uma variação de condições no tempo, e  isso constitui o elemento principal a ter em conta: a heterogeneidade  das condições do fenómeno em relação a uma constante, que é assegurar a  segurança da reprodução pessoal.
  7. Conclusão
           Não queria repetir tudo o que  disse até aqui, em forma de síntese. Pensei falar nas emoções dos  celibatários mas não me atrevi. Isto, por uma razão, faz parte da  análise: como entender os sentimentos de pessoas cuja lógica se  desenvolve a partir de uma prática de trabalho tão diferente da minha,  individual e cartesiana? Debrucei-me, e muito, sobre a mente que avalia  todas as suas condições reprodutivas, calcula e decide, através do  pensamento que se reparte por um sistema onde a sociedade parental e  religiosa substituem as ideias da família nuclear para todas as coisas.  Creio que as situações conjunturais dos camponeses da Vilatuxe e  Pinheiros, pelo menos, permitem dizer que na sua variabilidade os  indivíduos não contam; contam, sim, os grupos que repartem tarefas e  continuam a vida. Parece-me que a situação diferencial de cada membro de  uma estrutura parental é estrategicamente importante na aquisição de  recursos por parte do grupo num processo de trabalho. Entre os  camponeses, esse grupo que tanto tem variado na sua composição e nas  condições de subsistência desde a Revolução Francesa, continuam a não  largar o burro e o arado para trabalhar. Por vezes parece que se  industrializam, depois voltam a trabalhar a terra.
          Não há dúvida que no mundo da  lógica da maximização, o trabalho camponês debate-se numa revolução  liberal para ele inacabada, por vezes procurando dinheiro, por vezes  semeando batatas. Creio que a oscilação para o segundo é mais  recorrente. É este facto que, no sistema de acumulação do capital mantém  como consequência a manipulação de recursos e a venda cara, que de  outra forma libertaria o trabalho do camponês da sua condição parental e  religiosa, juntamente com o facto de pagar pouco pelos produtos, sejam  homens sejam bens.  Enquanto esta situação se mantiver, manter-se-ão  também os elementos ideais e os seus contextos legais e de produtividade  do saber reprodutivo, que distribui cuidadosamente os recursos. Revendo  este factores, estudando a aldeia e a sua situação ou contexto  historico-económico, creio que podemos explicar o processo que conduz,  uns ao casamento, e outros ao celibato. É com este capítulo  das minhas  observações que encerro este capítulo, que foi um passeio pelos factores  que distribuem pessoas, bens e saberes, na fabricação do bem máximo de  qualquer processo produtivo: o produto. O intermediário ou charneira  entre as ideias do seu grupo social, nas quais é treinado, quer as  aprenda com proveito ou não para ser dotado de bens para trabalhar  (cônjuges e terra), e a matéria que com o seu saber transformará.
 BIBLIOGRAFIA
Para escrever este texto tive presente as seguintes obras:
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 De entre os meus trabalhos, os seguintes são o antecedente do presente texto:
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 (1986)-a: “Religious practices in  Portugal” in Facts and figures about rural Portugal. Sociedad Portuguesa  de Estudes Rural, págs. 137-152, Lisboa.
 1986-b: “Cultura oral e cultura escrita: uma avaliação”, in O estudo da História, nº. 2, Lisboa.
 1987 – a : “Strategies de reprodution. Le  droit canon et le marriage dans un village portugais”, in Droit et  Societé. Revue international de théorie du droit et de sociologie  juridique, nº 5, págs. 7-22.
 1987–b: “La reproduction hors marriage”, in Etudes Rurales, Dec., Paris.
 1987-c: “Continuité et change: la  transition entre les paysan de la Galice”, in Revue Internationale des  Scienes Sociales, Novembre, Unesco, Paris.
 Documentos e publicações oficiais:
 Arquivo Paroquial, 1911-1983 – Róis dos Confessados e Status Animarum. Senhorim Portugal.
 Registo Paroquial, 1862-1983 – Livros de baptismos, casamentos e óbitos. Nelas, Portugal.
 Registo Paroquial, 1750-1974 – “Libros de bautizmos, casamientos e defunciones: Vilatuxe”, Galicia, España.
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 * Publicado in Comas, Dolores y González,  Aurora, Familia y relaciones sociales. Estudios desde la Antropologia  Social, Instituto Valencia de la Dona, Generalitat Valenciana, 1990.  (Tradução do castelhano por Filipe Reis).
 * Inquilinato: sistema de trabalho no  qual um proprietário latifundiário cede um pedaço de terra a um grupo  doméstico, recebendo em troca o trabalho do chefe de família nas suas  terras. É o sistemas de trabalho da hacienda latino-americana.

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