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domingo, 24 de julho de 2011

A reprodução no celibato



celibato        Quando falo de reprodução social, refiro-me à quantidade de recursos, bens e pessoas, que cada grupo social deve reservar para garantir a sua continuidade, bem como o conhecimento com o qual se organiza a relação entre pessoas e coisas e a sua gestão. A reprodução dos homens é um processo ligado aos bens, um sistema complexo, no qual a forma em que os bens são possuídos é parte da conjuntura histórica que define a estrutura em que os homens são feitos. Este facto acaba por explicar, na minha opinião, a coexistência de duas formas reprodutivas dos seres humanos: o casamento e o celibato. Do primeiro provém a filiação vinculada aos bens; do segundo, provêm os filhos sem pai social, tratando-se de uma filiação não vinculativa aos bens e mantida num sistema de parentesco extenso, no qual o apadrinhamento é o laço que define o lugar social de cada um.
Tanto a reprodução através do casamento como a reprodução por meio do celibato estão definidas e classificadas, estruturalmente previstas, pela lei positiva e pela religião. Ambas são formas de distribuir pessoas pelos bens em sistemas camponesas onde cada grupo doméstico necessita criar mais mão-de-obra, para mobilizar a sua tecnologia, do que aquela que pode sistema de propriedade que lhe retira parte do seu produto.
Manter com o resultado do seu trabalho, geralmente submetido ao proprietário dos bens, a um grupo doméstico completo, a uma família alargada, ou um grupo pequeno, denominado doméstico. Relações que nascem ou do casamento ou do celibato, denominado também amancebamento. Amancebamento, é dizer, uma relação amorosa, companheira e reprodutiva, permitida pela lei civil e canónica, que a exime de pecado ou dde criminalidade, sendo os descendentes naturalmente filhos dos amancebados, com os nomes do pai e da mãe que apenas tiveram como ritual, essa paixão de estarem juntos, cuidando-se mutuamente entre eles e dos filhos, sejam dos amancebados, ou prévio ao amancebamento. Acção que levara a Assembleia a legislar sobre o divorcio,  a partir de 1966 e incluir dentro do Código Civil, emendado nesse ano
Já antes me referi (1980) à produção com base no grupo doméstico e sua variação em relação ao desenvolvimento histórico. O casamento e a sua ligação com a produção de produtores num sistema em que os camponeses ganharam acesso à propriedade, foi analisado por mim em relação ao rito e ao lucro (1985); igualmente, contextualizei as ideias doutrinais e canónicas que, antes do direito positivo, definiam a relação entre pessoas e destas com os bens (1986-a,1986-b). No presente texto quero discutir de que forma o celibato camponês faz parte do sistema reprodutivo, ou seja, como complementa o trabalho do casamento, a adopção, o funcionamento em família extensa; e como se processa a reprodução celibatária num sistema de propriedade, vinculada ou privada, em circulação, que, à partida, exclui pessoas da propriedade e define a massa de bens que circularão apenas através da herança e casamento (posteriormente através do contrato de compra e venda); bem como, ainda, o tratamento dado ao produto da reprodução celibatária – o bastardo –, de modo a assegurar a sua inclusão no processo de trabalho, através da aplicação de normas éticas que o situam claramente dentro do grupo social, do qual a bastardia constitui a filiação complementar à do casamento. 1

2 – O lugar

Pinheiros é uma das catorze aldeias de uma freguesia das montanhas do Centro de Portugal. Os registos mais antigos dos seus habitantes que encontrei, de 1668, e a reconstrução que fiz da aldeia e da sua população, permitem-me fornecer alguns dados sobre o passado. A terra, dedicada à vinha, pertence, em sistema de morgadio, à família C, residente numa das aldeias próximas da igreja, no vale de Dois Rios.
As terras de Pinheiros, como as da maior parte da freguesia, estavam repartidas, em quintas de dimensão variável, pelos aforados detentores de um contrato, e tinha uma casa central, pertença do morgado local, bem como seis outras, de quinteiros que se foram aparentando entre si; era comum estes serem designados proprietários. A sua propriedade, transmissível, consistia no uso, abuso e usufruto da terra. É um quarto direito, o da raiz da propriedade, que liga (ata) o quinteiro ao senhor. A terra, vinculada a ele, não podia sair do seu controlo e mão, como romanicamente se diz, na medida em que se trata de um direito ou forma definida de acesso, pela qual o filho mais velho é proprietário através da herança. O quinteiro, ou foreiro, ou enfiteuta, pode ter toda a propriedade mas, a raiz, ou o conceito de raiz da propriedade, limita-o e dirige a produção dos seus bens. Cada quinteiro, por sua vez, conta com trabalhadores jornaleiros que, sazonal ou permanentemente, trabalham para ele em troca de comida, casa e eventualmente, algum interesse pecuniário. O morgado recebia das mãos do rei o direito de ter a terra, tornando-se proprietário centralizador e redistribuidor por meio de aforamentos; o jornaleiro recebe a sua do trabalhador da terra do senhor.
Pinheiros contava também com baldios, trabalhados em sistemas de terraços, pelos jornaleiros. A azeitona, o vinho, o centeio e o trigo, bem como animais de tracção, constituíam os produtos; tal como na maior parte da Europa. O milho e a batata americanos incorporaram-se e mais tarde, tal como a  vinha, quando a filoxera matou a original, em começos do século XX.
Os meus dados, sistematizados apenas no referente ao período de 1983-1864 (pág.135) devido ao trabalho de campo ser recente, mostram que, às sete casas originais, haviam-se já agregado outras nove até 1850, oito de 1850 a 1900, até se atingir o número de sessenta e oito com que contava na época do início da minha pesquisa. O crescimento deveu-se aos casamentos entre as pessoas das quintas originais, praticando-se até 1950 um casamento acentuadamente endogâmico. Entre 1983 e 1864 celebraram-se duzentos e sessenta e nove casamentos, tendo nascido setecentas e cinquenta e duas crianças; destas, seiscentas e cinquenta eram dos matrimónios e cento e duas de mães cujos parceiros sexuais não foram reconhecidos pelos meios da cultura letrada, ainda que, através dos comportamentos religiosos e mesmo de dote, se possa reconhecer a sua filiação.
Os filhos de fora do casamento – legítimos, apesar de tudo, devido ao facto de o sistema estar previsto nos códigos – foram produzidos por 49 mulheres, das quais só duas eram viúvas; as outras não tinham qualquer vínculo oficial com um homem, ainda que tivessem tido um vínculo social, e depois, de parentesco espiritual, com a família do procurador. Estas mulheres pertencem, juntamente com outras que não tiveram filhos, ao grupo de celibatárias da aldeia; no qual se contam também quarenta e seis homens que nunca casaram. A partir dos factos, a estrutura do celibato pode apresentar-se da seguinte forma: entre 1983 e 1864, noventa e oito adultos que podiam ter casado não o fizeram; destes, oitenta já morreram, número que faz parte dos trezentos e quarenta e sete casos de mortes entre as datas mencionadas, para o grupo dos adultos. Para completar o quadro das pessoas, e uma vez que os dados económicos não estão todos elaborados, posso dizer que, do total de pessoas casadas e solteiras que morreram, há uma classificação trinta e cinco pequenos proprietários ou quinteiros, três caseiros, sessenta e sete jornaleiros ou camponeses sem mais terra que os baldios do monte, dezassete artesãos e um proprietário maior, todos eles contados de entre os homens que casaram e que constituem os cento e vinte e três grupos domésticos que tenho em observação, entre 1983 e 1864. A estes, há a juntar os celibatários, sobre os quais irei, de seguida, falar.
Só uma nota em tom de comentário, primeiro: de entre os chamados proprietários, alguns voltam a figurar como jornaleiros sem terra, enquanto que um elevado número passa a ser proprietário entre as datas indicadas, especialmente depois dos anos de 1950; em segundo lugar, algumas perguntas: de entre os celibatários, os homens tiveram filhos? De entre as mulheres, quem eram os pais dos seus filhos? De entre os que não tiveram filhos, o título precário de proprietário explicará o facto, como em Bourdieu (1962) e O’Neill (1984)?
O facto de conhecer a paternidade dos celibatários, a sua situação social e a sua capacidade reprodutiva, por uma parte; e por outra, analisar a condição das mulheres celibatárias que têm filhos, podem permitir avançar a hipótese de que tal condição é uma defesa patrimonial que, associada a uma concepção cultural da hierarquia das pessoas, permite criar mão-de-obra não vinculada aos bens, num campesinato que não está estabelecido sobre a terra, mas que, apesar disso, casa e não casa como se tivesse bens.

3. O celibato

O conceito não é um acaso demográfico, como já o disse Bourdieu e desenvolveu O’Neill, para Portugal. Mas este facto não se confirma somente com os dados que eles apresentam: na génese do campo religiosos, isto é, na teologia, na lei canónica e na doutrina, estão previstos os casos em que o celibato é aconselhado. O Evangelho (versão de 1964) fala dos eunucos feitos pelo amor de Deus e S. Paulo (Corintos, I), insistindo que o casamento permite evitar a fornicação, logo o fogo eterno; mas quem não puder evitar o casamento que se mantenha celibatário. As Confissões, de Agostinho de Hipona (363), não sendo propriamente uma obra erótica, contém todo um material resultante do arrependimento do pecado da luxúria, o qual, apesar de tudo, não é tão relevante para a cristandade, como nos recorda Delumeau (1983).
Pergunto-me porquê o ideal do celibato, que funda toda a hierarquia intermediária entre o comportamento e o prémio ou o castigo final; um celibato ideal, para mais: só no Portugal de 1383-1412, as legitimações feitas por el-rei D. João (Viegas, 1984) referem filhos de padres e de homens casados. É possível pensar que, na sociedade patriarcal monogâmica, como forma de circular os bens, a subtracção dos varões à reprodução, revestida de ideal salvação, torna mais apertado o campo de circulação dos bens apropriados. Podemos, aliás, verificar que, na conduta camponesa, em geral, quem não tem bens não casa, a não ser que os seus bens sejam a sua prole, sendo por esta razão que os “meus” jornaleiros são todos casados.
O que é igualmente interessante é o facto de o celibato das mulheres ser tomado por garantido, numa concepção cultural de homem agressivo, coroada no século XVI pela imagem violenta e ambígua de Don Juan (Molière, 1665; Mozart, 1787), em que é a mulher que não é pessoa – não tem bens, não administra – sendo é sujeito natural do celibato. Assim sendo, é interessante verificar como são as celibatárias que têm filhos aquelas que são associadas à concepção da pobreza que é o resultado do pecado: da preguiça, da luxúria, dos que se salvarão gratuitamente por serem pobres, donde pouco importa que pequem ou não. Existe uma concepção de homem e mulher que, numa cultura que apropria os bens através do homem, está por detrás da reprodução celibatária e da recomendação de castidade que o código do Direito Canónico sistematiza. Na figura do celibatário, conceito masculino, falta mencionar a história do fundador da racionalidade e do livre arbítrio católico – Tomás de Aquino (1267-1273) –, salvo do desejo aos 17 anos graças a um milagroso cinto de castidade.
A concentração da atenção do celibato sobre a subtracção do varão, seja na prática social, seja por um subterfúgio da sociedade da cultura letrada na época da sua maior expansão – no positivismo –, tem início quando a propriedade da terra passa lentamente para os camponeses. Nos meus arquivos posso identificar os nomes dos pais celibatários ao lado das mães, até à época do Código Civil (1867;1966,1999): ou seja, quando a ideia do cidadão de direitos se universaliza e os bens se  redistribuem, numa sociedade do contrato onde só uma estirpe clara  faz circular bens; parece que nem toda a lei pode ser clara para dirigir a sua circulação.
Penso que se trata do momento em que a filiação espiritual é sistematizada e o apadrinhamento passa a ser importante não só como apropriação de trabalho, mas como protecção e classificação de pessoas, feita através da lei moral. Para o saber, apenas podemos argumentar com casos. Antes, há que recordar, todavia, que a lei proibia o casamento aos vagabundos, categoria em que recaíam a maior parte dos jornaleiros, uma vez que se deslocavam de um local para outro à procura de trabalho; seria necessário saber o que diz a lei sobre a possibilidade de os pobres casarem. O que interessa agora, todavia, é percorrer os casos em que há reprodução celibatária, para conhecer a sua estrutura: declino, de antemão, a possibilidade de conhecer a sua extensão e importância como fenómeno. Somente desejo saber qual o sentido, a razão cultural, do celibato, especialmente quando existe reprodução: e a forma de explorar o fenómeno é ir do que se conhece no trabalho de campo, para o que só se pode reconstruir e contextualizar através da estrutura histórica.
O que, em primeiro lugar chama a atenção, é o facto de os celibatários se apresentarem em grupos de irmãos, co-proprietários ou não; e de a reprodução celibatária decrescer até quase nada, desde que a propriedade é camponesa. Vou, no entanto, considerar , apenas, os factos que falam de uma população estável, sem que eu possa saber se eram ou não vagi. Quem lhes diria, por fim, qual o contexto letrado dentro do qual podia desenvolver a sua conduta, era o padre, essa memória do povo que se ergue entre a previsão oral do comportamento e a lei. Porém, como amigo não fala, vejamos factos e texto em contexto.
Parecem existir dois factos coexistentes no celibato: a produção de uma filiação não vinculada aos bens, por meio da subtracção do nome do pai biológico que não declare a sua vontade de ser o social; e a concepção e a situação social da mulher. Num sistema de transmissão de bens por via do casamento, poder-se-ia dizer, à luz das ideias cristãs que falam de pobres e ricos, que existem mulheres casáveis (marriageable women) e não casáveis. A razão de ser ou não casável é a utilidade que elas possam ter de constituir um grupo de trabalho: como já afirmei noutras ocasiões, a economia dos grupos domésticos camponeses passa, também, pela fabricação da sua própria força de trabalho, sendo esta feita de filhos, ou de irmãos e parentes. Os filhos têm a vantagem de renovar o ciclo doméstico, mas dividem o património; a combinação de filhos de um sibling com o celibato de outros, proporciona os dois elementos, a concentração quase germânica da propriedade na capacidade de trabalho do conjunto e a renovação do ciclo doméstico pela descendência de um dos membros.
Este tipo de celibato atravessa os cento e cinquenta anos de história de Pinheiros que até agora sistematizei, onde, de entre os celibatários actuais, existe um grupo de quatro irmãos – os M. –, homens e mulheres já na casa dos 60 anos de idade, cujos outros quatro irmãos tiveram filhos. Outros três grupos são de um irmão e duas irmãs, outro de quatro irmãos e outro ainda de duas irmãs. No caso dos celibatários mortos, existem onze casos de irmãs distribuídas ao longo de cem anos, ou seja, em diferentes circunstâncias históricas: desde a propriedade vinculada até à liberalização da compra camponesa. Estes somam trinta e três pessoas das oitenta que nunca casaram. A composição dos grupos celibatários actuais, a distribuição demográfica e as suas histórias de vida, apresentam certos traços em comum: das dezoito pessoas que, na actualidade, nunca se casaram, os dez homens eram filhos de trabalhadores sem terra que se ausentaram por muitos anos, em países como a Austrália, Argentina e a Alemanha; as mulheres, oito no total, nunca saíram da aldeia como emigrantes – algumas tão-pouco para irem à cidade mais próxima – à excepção daquela que saiu da aldeia para ir ao Rio de Janeiro, de avião, aos 65 anos.
Estes homens, nos países para onde emigraram, como se pode observar nas suas histórias de vida, estão socialmente situados de forma a que o olhar etnocéntrico não permite serem escolhidos ou aceites pelas mulheres do país de acolhimento; ou são eles próprios que não têm interesse em provocar matrimónios mistos, incómodos por via do cruzamento de ideias e línguas. Por outro lado, o objectivo do emigrante que estudei, ou melhor, do tipo que estudei, é juntar dinheiro para comprar a terra que, na aldeia, havia entrado no circuito de comercialização. Os irmãos M., que foram para a Argentina e voltaram a trabalhar a terra que compraram, são dois de oito filhos de um caseiro. Os irmãos que casaram na aldeia também haviam emigrado depois de haverem casado com mulheres que tinham uma pequena herança. Estes dois – J. e E. – foram, os que, mais jovens, ficavam a trabalhar com os seus pais, como caseiros dos proprietários R. R. e C. Os pais, as duas únicas irmãs e eles, os mais jovens, formavam o grupo de trabalho que permitia a todos sobreviverem; os pais caseiros, como eu já observara na Galiza (1980), geralmente «colocam» os filhos mais velhos em casamento, na medida em que a multiplicação de descendência jovem lhes permite substituírem o filho que libertaram, por volta dos 30 anos de idade, ao prepararem-no para um casamento que o coloca na terra de outrém, a partir daí, sua.
A morte dos seus pais e antes da sua velhice, bem como a mudança nas relações de trabalho causadas pelas compras e vendas de terras, permitem aos dois irmãos saírem, comprar terras que as irmãs trabalham e recrutar descendentes de entre os sobrinhos, filhos de seus irmãos, de quem são padrinhos – o que, todavia, está previsto pela lei, pelas regras éticas da doutrina e pela significação económica que as pequenas terras de uns têm para os outros e a força de trabalho que, entre todos, constituem. Os celibato dos irmãos M., como dos quatro filhos do Sr. J. – jornaleiro sem terra até os filhos emigrarem –, dos S. e das irmãs J., adquire significado na medida em que cada um se integra diversamente no grupo familiar extenso que administra a terra e o trabalho com uma noção que diríamos germânica (não individualista românica) da relação com os recursos. Estes celibatários não necessitam de se casar, ficando a sua reprodução melhor assegurada com o seu não casamento. Acerca de sentimentos, não sei se tem cabimento falar, em relação a um sistema tão estreito de construção de recursos como é o último período da história da aldeia; e, no que diz respeito ao erotismo, é provável que fosse resolvido na rua da lanterna vermelha da cidade próxima de Viseu, onde os homens se deslocavam. Quanto às mulheres, só se pode dizer que, no presente, não têm filhos.
Contudo, nem todos os celibatários asseguram a sua reprodução apenas com a sua integração diferenciada na família. Um dos quatro homens não casados teve um filho com uma mulher que chegou à aldeia como empregada doméstica, enquanto que o único solteiro, por sua vez, filho único, teve também um filho com essa mesma mulher. Ambos ampararam a mãe com terra e dinheiro, enquanto que membros da sua família foram os padrinhos, aspecto que desenvolveria de seguida. Por enquanto, só quero retomar os conceitos de mulheres «para casar» e de mulheres «para não casar». De uma parte, temos os homens e as mulheres subtraídos à reprodução humana vinculativa, que permite assegurar a de um grupo maior: de outra, temos as mulheres celibatárias com filhos, todas elas  pobres, isto é, não estão vinculadas a recursos. Das 49 mulheres acima citadas, nenhuma tinha outro bem que não o seu trabalho e o seu corpo, sendo, por sua vez, filhas de jornaleiros.
O que é que permite que as filhas celibatárias dos proprietários não tenham filhos ou, se os têm, que não fiquem com eles? Creio ter já discutido suficientemente a ideia de uma filiação não vinculada a bens – mais patente ainda nos casos das mulheres proprietárias que não deixam provas da sua maternidade –, isto é, não registam os seus filhos como tais, o que é possível dada a forma de provar o real por meio da raison graphique da cultura camponesa. Não se trata apenas de não os expor, trata-se de não os inscrever, registar. A forma do celibato mostra de que forma a circulação dos bens se prende com a manutenção de diversos estatutos das pessoas. Um facto a destacar: na concepção da propriedade vinculada, uns transmitem bens, ou por herança ou por casamento, ou por aforamento, enquanto que outros fazem bebés. Tecnicamente, se a cultura camponesa cumprisse as prescrições da doutrina, apenas os casados teriam filhos; mas como aquilo de que se trata é de uma racionalidade na gestão dos recursos, da qual emana por sistematização dos teólogos a ideia deduzida de Deus, o assunto é diferente. Os que não estão vinculados à terra, ou os que mais tarde não a adquirem, sofrem de uma exclusão à partida, que lhes confere outra tarefa dentro da sociedade, a serem pobres.
Como é conceptualizado um pobre na doutrina? (Com isto não estou a propor que as ideias decidam o que se passa na realidade, mas simplesmente que a sistematizam e orientam).
A cultura camponesa, contextualizada pela terra da lei, tem uma prática e uma ideia, legitimada pela doutrina, pela teologia e pela lei positiva, que prevê uma reprodução celibatária, no seio de um sistema e que estão na base da classificação das mulheres.

4 – O produto

Parece, pois, possível afirmar que o celibato é reprodutivo, seja porque há uma quantidade de homens que são desviados do processo através do qual circula a riqueza e os seus direitos constrangidos, seja porque é em si um sistema de criar pessoas, ou, uma filiação legalmente prevista como não vinculada aos bens e pessoas. Neste último caso, haveria que argumentar que nem todos os filhos dos transmissores de bens se casam, quando a realidade é bem contrária: da família proprietária morgada, entre 1862 e 1920, todos os filhos casaram, excepto dois que morreram celibatários, mas aos 30 anos. Na outra família proprietária da aldeia, a família F, todos os filhos morreram celibatários aos 80 anos. Os filhos dos morgados têm um nível de transação na circulação de bens e prestígio da sociedade hierarquizada e casam com facilidade – como os filhos de qualquer proprietário de patrimónios concentrados e extensos. Os filhos do proprietário F que morreram, todos eles, celibatários, morreram na miséria em consequência da administração do património feita pelo seu pai louco. Os filhos de outros proprietários que não casam, entram no sistema da integração diversa dos membros da família. A questão é saber se o celibato, ou melhor, de que forma o celibato – que se dá no seio de uma teoria de circulação de bens associados a pessoas e que privilegia o casamento e a herança como suas vias – é um sistema reprodutivo em si e não um sistema de esterilidade ou de castidade daqueles que vêem impedida a sua capacidade transmissora de bens.
O meu problema, como tenho vindo a argumentar, é juntar o não casamento com a filiação. É claro que, de entre as celibatárias, são as que não produzem vínculo, que têm filhos, mesmo que todas possam ter bebés. Que força permite que as celibatárias proprietárias possam morrer, aparentemente como única garantia de que tal instituição existe, para parafrasear Brian O’Neill (1984)? Ou nunca tiveram filhos, ou, o caminho adoptado é o da roda dos expostos, ou a não inscrição dos registos, que não gera direitos, como já referi. Quanto aos homens, excepto para os casos actuais, é virtualmente impossível provar a paternidade nos casos históricos. Examinei de forma detalhada a lista de padrinhos de baptismo dos filhos das mulheres celibatárias, pensando ser provável que o padrinho ocultasse o pai biológico, seguindo, assim, uma pista oferecida pela cultura. Foram estes os dados que consegui.
De cento e dois nascimentos fora do casamento, vinte e oito proprietários solteiros foram os padrinhos – um deles três vezes –, trinta jornaleiros solteiros foram padrinhos de filhos das suas irmãs, ou de filhos de mulheres com as quais não parecem unidos por parentesco; por vezes, trata-se de homens que vêm de outras terras. De entre os padrinhos, nove são proprietários casados, entre os quais se destaca o último morgado, o qual tinha a fama de grande reprodutor, seis são trabalhadores casados, parentes da mãe, e dois são jornaleiros viúvos. Do conjunto, existem três tipos de factos que ajudam a interpretar: o Direito Canónico proíbe, na versão anterior à reforma (C.765) e no novo (C.874) que os pais sejam padrinhos, como se passou em dois casos de Pinheiros. Um segundo tipo de factos é que, até 1964, o número dos pais não casados figura no registo, sendo o padrinho outra pessoa; nos dois casos que correspondem à época que estudo, são irmãos do pai da criança – o próprio facto da inscrição pode explicar que se trata de pessoas diferentes. Um terceiro tipo é o actual, onde, em todos os casos, existe um irmão ou irmã do pai que faz de padrinho ou madrinha. O que me leva a pensar que por detrás do sistema de apadrinhamento – como segurança em geral – possa estar escondida a figura do pai biológico, é o facto de se contarem entre os padrinhos os filhos solteiros do morgado, apadrinhando os filhos das suas criadas ou jornaleiras solteiras, e uma vez cada um – facto que é significativo somente se contextualizado com o costume dos filhos dos senhores experimentarem a sua virilidade com a criadagem, as dependentes ou os dependentes.
Não afirmo que o próprio pai seja o padrinho, mas sim que a condição do padrinho esboça o pai. É o caso dos jornaleiros solteiros, o grupo que, predominantemente, apadrinha os filhos do seu amigo ou parente. Todos eles são jovens entre os 17 e os 22 anos, idade também procurada para dar um filho em baptismo. O problema da identidade do pai subsiste, apesar de ser claro que as mulheres sedentárias de uma aldeia tão fechada tenham os seus filhos com os homens da aldeia que lhes podem proporcionar maior segurança. Afinal, não é, apenas, a masculinidade da virilidade somente o que seduz, mas sim o conjunto de recursos que a rodeiam que acabam por construí-la, mesmo que esta seja efeminada, ou machista. É sabido, que um proprietário de ovelhas podia ter mais mulheres a quererem casar com ele do que hoje, quando ser pastor é definido como ofício de «parvos e malcheiroso». A virilidade precisa de, pelo menos, um recurso, para ser masculina.
O sistema de parentesco, contudo, é eficaz e legislado com sanções para o não cumprimento do encargo, tendo igualmente efeitos pragmáticos na aliança de trabalho. Entre a sociedade camponesa existe o conceito cultural da apropriação dos filhos e dos afilhados, ao qual correspondem direitos que o afilhado tem sobre os bens do padrinho, ou pelo menos sobre a sua massa de consumo – ou trabalho. Que tantos proprietários, jovens ou não, sejam os padrinhos, é o sinal de que este sistema é o sistema que, por fim, dá a figura de autoridade e bens a um filho destituído, que é agora socialmente referenciado dentro do grupo através do padrinho que tem. O apadrinhamento é diferente da instituição de compadrio, é  filiação do filho do celibato. Resta saber ainda como é que todas estas mulheres podem ter estes filhos e continuarem a vida ritual para a qual não estariam, tecnicamente, autorizadas – especialmente as que persistem nas suas relações, evidenciadas pelo eventual nascimento dos filhos. Por outras palavras, o celibato inclui uma fornicação mais permanente, nem sempre resultante num fruto. No caso das mulheres que no presente têm filhos fora do casamento, todas elas são desvinculadas de famílias e de bens: sejam as fileiras de mães sem laço oficial, sejam mulheres que vêm de fora. Para estas mulheres, não reservadas para transmitir bens, canaliza-se o desejo dos jovens. Note-se que no caso de uma delas – H. –, os três filhos que têm pais jovens, de 17 a 23 anos, no caso de outras, os pais são os proprietários que lhes dão trabalho, dentro do qual, no quadro da relação arbitrária senhor vinculado/trabalhador excluído, parte do contrato para trabalhar e viver é aceitar o vínculo sexual.
Na sociedade vinculada, primeiro, e proprietária depois, a hierarquização da mulher parte da relação com a terra, o que as divide entre criadoras ou produtoras de proprietários, e produtoras de trabalhadores; este último tipo de mulher, juntamente com a sua capacidade de trabalho e de sexualidade, tem, de uma parte, o filho, que futuramente a ajudará a si e ao pai, ou à família, a ela vinculada pelo baptismo, definido pela ética cristã que converte em seus aliados do pai e familiares. Creio, porém, existir outro elemento a destacar na possibilidade de fornicar, mais facilmente, com uma jornaleira do que com uma proprietária: o que faz  uma pessoa, na sociedade camponesa, não é a dignidade cristã do indivíduo, mas sim a sua possibilidade de administrar, isto é, a de ter manipular recursos. As jornaleiras não têm mais estatuto, numa sociedade hierarquizada em ofícios e estatutos, do que ser um pouco adscrito à terra, participar do bem-estar sem interferir no percurso da circulação dos bens e de ser capaz de dar à luz mão-de-obra. Estas são as ideias que me parecem marcar o celibato, e que passo a sintetizar em forma de conclusão.

5. Conclusão

A hipótese que quis discutir é apenas a exploração de uma situação possível quando as pessoas são classificadas como parte dos bens, de que ambos são recurso: de uma parte, o centro distribuidor de terra através de contratos, da outra, o grupo social que desde o começo fica excluído de terras e de transmitir recursos, pelo que a transmissão se processa através da ligação pessoal de classes diferentes de pessoas – uma subordinação pessoal por meio da qual a riqueza é feita. Por outra parte, há que considerar apenas a relação que os camponeses têm com a produção e com a cultura letrada: a primeira é aleatória até à época da propriedade; a segunda é de desconhecimento, pelo que o contexto lhes é fixado e transmitido por palavras, símbolos e o conjunto do campo legal e religioso que, conjuntamente com as suas estratégias de resposta, governam a sua vida.
A minha tentativa de explicar o celibato como reprodução de uma filiação não vinculada, só é possível ao aplicar-se a uma sociedade, na qual os bens, pelo vínculo ou pelo preço, não estão, enquanto recursos, ao alcance de todos; e numa sociedade que concebe como possível, a partir da materialidade que é combinar processos de trabalho com processos de transmissão de bens de produção de produtores, a existência de uma classe estéril. Uma classe que faz filhos para trabalharem mas não para transmitirem, graças a prever na lei, na moral, na religião e nos costumes, o celibato. Celibato reprodutor que só é possível por existir na cultura uma relação entre o facto da propriedade dos recursos e a noção de bem e de mal que classifica e hierarquiza as pessoas em alianças legalmente definidas.
Lisboa, Dezembro de 1986.
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* Traduzido do castelhano por Miguel Vale de Almeida – Antropologia Social – ISCTE. Publicado em Ler História, nº.11, 1987, Lisboa. Versão abreviada do original em francês publicado em Études Rurales,  N.º 113-114, Janvier-juin,1989, Paris


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1. . Edward. Westermarch (1891) no referente à Europa do século XIX e outras culturas; bem como Bronislaw Malinowski, 1913; Havelock Ellis, 1915; Meyer Fortes, 1949-a; Jack  Goody, 1976 e 1983.

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