Tanto a reprodução através do casamento  como a reprodução por meio do celibato estão definidas e classificadas,  estruturalmente previstas, pela lei positiva e pela religião. Ambas são  formas de distribuir pessoas pelos bens em sistemas camponesas onde cada  grupo doméstico necessita criar mais mão-de-obra, para mobilizar a sua  tecnologia, do que aquela que pode sistema de propriedade que lhe retira  parte do seu produto.
 Manter com o resultado do seu trabalho,  geralmente submetido ao proprietário dos bens, a um grupo doméstico  completo, a uma família alargada, ou um grupo pequeno, denominado  doméstico. Relações que nascem ou do casamento ou do celibato,  denominado também amancebamento. Amancebamento, é dizer, uma relação  amorosa, companheira e reprodutiva, permitida pela lei civil e canónica,  que a exime de pecado ou dde criminalidade, sendo os descendentes  naturalmente filhos dos amancebados, com os nomes do pai e da mãe que  apenas tiveram como ritual, essa paixão de estarem juntos, cuidando-se  mutuamente entre eles e dos filhos, sejam dos amancebados, ou prévio ao  amancebamento. Acção que levara a Assembleia a legislar sobre o  divorcio,  a partir de 1966 e incluir dentro do Código Civil, emendado  nesse ano
 Já antes me referi (1980) à produção com  base no grupo doméstico e sua variação em relação ao desenvolvimento  histórico. O casamento e a sua ligação com a produção de produtores num  sistema em que os camponeses ganharam acesso à propriedade, foi  analisado por mim em relação ao rito e ao lucro (1985); igualmente,  contextualizei as ideias doutrinais e canónicas que, antes do direito  positivo, definiam a relação entre pessoas e destas com os bens  (1986-a,1986-b). No presente texto quero discutir de que forma o  celibato camponês faz parte do sistema reprodutivo, ou seja, como  complementa o trabalho do casamento, a adopção, o funcionamento em  família extensa; e como se processa a reprodução celibatária num sistema  de propriedade, vinculada ou privada, em circulação, que, à partida,  exclui pessoas da propriedade e define a massa de bens que circularão  apenas através da herança e casamento (posteriormente através do  contrato de compra e venda); bem como, ainda, o tratamento dado ao  produto da reprodução celibatária – o bastardo –, de modo a assegurar a  sua inclusão no processo de trabalho, através da aplicação de normas  éticas que o situam claramente dentro do grupo social, do qual a  bastardia constitui a filiação complementar à do casamento. 1
 2 – O lugar
Pinheiros é uma das catorze aldeias de  uma freguesia das montanhas do Centro de Portugal. Os registos mais  antigos dos seus habitantes que encontrei, de 1668, e a reconstrução que  fiz da aldeia e da sua população, permitem-me fornecer alguns dados  sobre o passado. A terra, dedicada à vinha, pertence, em sistema de  morgadio, à família C, residente numa das aldeias próximas da igreja, no  vale de Dois Rios.
 As terras de Pinheiros, como as da maior  parte da freguesia, estavam repartidas, em quintas de dimensão variável,  pelos aforados detentores de um contrato, e tinha uma casa central,  pertença do morgado local, bem como seis outras, de quinteiros que se  foram aparentando entre si; era comum estes serem designados  proprietários. A sua propriedade, transmissível, consistia no uso, abuso  e usufruto da terra. É um quarto direito, o da raiz da propriedade, que  liga (ata) o quinteiro ao senhor. A terra, vinculada a ele, não podia  sair do seu controlo e mão, como romanicamente se diz, na medida em que  se trata de um direito ou forma definida de acesso, pela qual o filho  mais velho é proprietário através da herança. O quinteiro, ou foreiro,  ou enfiteuta, pode ter toda a propriedade mas, a raiz, ou o  conceito de raiz da propriedade, limita-o e dirige a produção dos seus  bens. Cada quinteiro, por sua vez, conta com trabalhadores jornaleiros  que, sazonal ou permanentemente, trabalham para ele em troca de comida,  casa e eventualmente, algum interesse pecuniário. O morgado recebia das  mãos do rei o direito de ter a terra, tornando-se proprietário  centralizador e redistribuidor por meio de aforamentos; o jornaleiro  recebe a sua do trabalhador da terra do senhor.
 Pinheiros contava também com baldios, trabalhados em sistemas de  terraços, pelos jornaleiros. A azeitona, o vinho, o centeio e o trigo,  bem como animais de tracção, constituíam os produtos; tal como na maior  parte da Europa. O milho e a batata americanos incorporaram-se e mais  tarde, tal como a  vinha, quando a filoxera matou a original, em começos do século XX.
 Os meus dados, sistematizados apenas no  referente ao período de 1983-1864 (pág.135) devido ao trabalho de campo  ser recente, mostram que, às sete casas originais, haviam-se já agregado  outras nove até 1850, oito de 1850 a 1900, até se atingir o número de  sessenta e oito com que contava na época do início da minha pesquisa. O  crescimento deveu-se aos casamentos entre as pessoas das quintas  originais, praticando-se até 1950 um casamento acentuadamente  endogâmico. Entre 1983 e 1864 celebraram-se duzentos e sessenta e nove  casamentos, tendo nascido setecentas e cinquenta e duas crianças;  destas, seiscentas e cinquenta eram dos matrimónios e cento e duas de  mães cujos parceiros sexuais não foram reconhecidos pelos meios da  cultura letrada, ainda que, através dos comportamentos religiosos e  mesmo de dote, se possa reconhecer a sua filiação.
 Os filhos de fora do casamento –  legítimos, apesar de tudo, devido ao facto de o sistema estar previsto  nos códigos – foram produzidos por 49 mulheres, das quais só duas eram  viúvas; as outras não tinham qualquer vínculo oficial com um homem,  ainda que tivessem tido um vínculo social, e depois, de parentesco  espiritual, com a família do procurador. Estas mulheres pertencem,  juntamente com outras que não tiveram filhos, ao grupo de celibatárias  da aldeia; no qual se contam também quarenta e seis homens que nunca  casaram. A partir dos factos, a estrutura do celibato pode apresentar-se  da seguinte forma: entre 1983 e 1864, noventa e oito adultos que podiam  ter casado não o fizeram; destes, oitenta já morreram, número que faz  parte dos trezentos e quarenta e sete casos de mortes entre as datas  mencionadas, para o grupo dos adultos. Para completar o quadro das  pessoas, e uma vez que os dados económicos não estão todos elaborados,  posso dizer que, do total de pessoas casadas e solteiras que morreram,  há uma classificação trinta e cinco pequenos proprietários ou  quinteiros, três caseiros, sessenta e sete jornaleiros ou camponeses sem  mais terra que os baldios do monte, dezassete artesãos e um  proprietário maior, todos eles contados de entre os homens que casaram e  que constituem os cento e vinte e três grupos domésticos que tenho em  observação, entre 1983 e 1864. A estes, há a juntar os celibatários,  sobre os quais irei, de seguida, falar.
 Só uma nota em tom de comentário,  primeiro: de entre os chamados proprietários, alguns voltam a figurar  como jornaleiros sem terra, enquanto que um elevado número passa a ser  proprietário entre as datas indicadas, especialmente depois dos anos de  1950; em segundo lugar, algumas perguntas: de entre os celibatários, os  homens tiveram filhos? De entre as mulheres, quem eram os pais dos seus  filhos? De entre os que não tiveram filhos, o título precário de  proprietário explicará o facto, como em Bourdieu (1962) e O’Neill  (1984)?
 O facto de conhecer a paternidade dos  celibatários, a sua situação social e a sua capacidade reprodutiva, por  uma parte; e por outra, analisar a condição das mulheres celibatárias  que têm filhos, podem permitir avançar a hipótese de que tal condição é  uma defesa patrimonial que, associada a uma concepção cultural da  hierarquia das pessoas, permite criar mão-de-obra não vinculada aos  bens, num campesinato que não está estabelecido sobre a terra, mas que,  apesar disso, casa e não casa como se tivesse bens.
 3. O celibato
O conceito não é um acaso demográfico,  como já o disse Bourdieu e desenvolveu O’Neill, para Portugal. Mas este  facto não se confirma somente com os dados que eles apresentam: na  génese do campo religiosos, isto é, na teologia, na lei canónica e na  doutrina, estão previstos os casos em que o celibato é aconselhado. O  Evangelho (versão de 1964) fala dos eunucos feitos pelo amor de Deus e  S. Paulo (Corintos, I), insistindo que o casamento permite evitar a  fornicação, logo o fogo eterno; mas quem não puder evitar o casamento  que se mantenha celibatário. As Confissões, de Agostinho de  Hipona (363), não sendo propriamente uma obra erótica, contém todo um  material resultante do arrependimento do pecado da luxúria, o qual,  apesar de tudo, não é tão relevante para a cristandade, como nos recorda  Delumeau (1983).
 Pergunto-me porquê o ideal do celibato,  que funda toda a hierarquia intermediária entre o comportamento e o  prémio ou o castigo final; um celibato ideal, para mais: só no Portugal  de 1383-1412, as legitimações feitas por el-rei D. João (Viegas, 1984)  referem filhos de padres e de homens casados. É possível pensar que, na  sociedade patriarcal monogâmica, como forma de circular os bens, a  subtracção dos varões à reprodução, revestida de ideal salvação, torna  mais apertado o campo de circulação dos bens apropriados. Podemos,  aliás, verificar que, na conduta camponesa, em geral, quem não tem bens  não casa, a não ser que os seus bens sejam a sua prole, sendo por esta  razão que os “meus” jornaleiros são todos casados.
 O que é igualmente interessante é o facto  de o celibato das mulheres ser tomado por garantido, numa concepção  cultural de homem agressivo, coroada no século XVI pela imagem violenta e  ambígua de Don Juan (Molière, 1665; Mozart, 1787), em que é a  mulher que não é pessoa – não tem bens, não administra – sendo é sujeito  natural do celibato. Assim sendo, é interessante verificar como são as  celibatárias que têm filhos aquelas que são associadas à concepção da  pobreza que é o resultado do pecado: da preguiça, da luxúria, dos que se  salvarão gratuitamente por serem pobres, donde pouco importa que pequem  ou não. Existe uma concepção de homem e mulher que, numa cultura que  apropria os bens através do homem, está por detrás da reprodução  celibatária e da recomendação de castidade que o código do Direito  Canónico sistematiza. Na figura do celibatário, conceito masculino,  falta mencionar a história do fundador da racionalidade e do livre  arbítrio católico – Tomás de Aquino (1267-1273) –, salvo do desejo aos  17 anos graças a um milagroso cinto de castidade.
 A concentração da atenção do celibato  sobre a subtracção do varão, seja na prática social, seja por um  subterfúgio da sociedade da cultura letrada na época da sua maior  expansão – no positivismo –, tem início quando a propriedade da terra  passa lentamente para os camponeses. Nos meus arquivos posso identificar  os nomes dos pais celibatários ao lado das mães, até à época do Código  Civil (1867;1966,1999): ou seja, quando a ideia do cidadão de direitos  se universaliza e os bens se  redistribuem, numa sociedade do contrato  onde só uma estirpe clara  faz circular bens; parece que nem toda a lei  pode ser clara para dirigir a sua circulação.
 Penso que se trata do momento em que a  filiação espiritual é sistematizada e o apadrinhamento passa a ser  importante não só como apropriação de trabalho, mas como protecção e  classificação de pessoas, feita através da lei moral. Para o saber,  apenas podemos argumentar com casos. Antes, há que recordar, todavia,  que a lei proibia o casamento aos vagabundos, categoria em que recaíam a  maior parte dos jornaleiros, uma vez que se deslocavam de um local para  outro à procura de trabalho; seria necessário saber o que diz a lei  sobre a possibilidade de os pobres casarem. O que interessa agora,  todavia, é percorrer os casos em que há reprodução celibatária, para  conhecer a sua estrutura: declino, de antemão, a possibilidade de  conhecer a sua extensão e importância como fenómeno. Somente desejo  saber qual o sentido, a razão cultural, do celibato, especialmente  quando existe reprodução: e a forma de explorar o fenómeno é ir do que  se conhece no trabalho de campo, para o que só se pode reconstruir e  contextualizar através da estrutura histórica.
 O que, em primeiro lugar chama a atenção,  é o facto de os celibatários se apresentarem em grupos de irmãos,  co-proprietários ou não; e de a reprodução celibatária decrescer até  quase nada, desde que a propriedade é camponesa. Vou, no entanto,  considerar , apenas, os factos que falam de uma população estável, sem  que eu possa saber se eram ou não vagi. Quem lhes diria, por  fim, qual o contexto letrado dentro do qual podia desenvolver a sua  conduta, era o padre, essa memória do povo que se ergue entre a previsão  oral do comportamento e a lei. Porém, como amigo não fala, vejamos  factos e texto em contexto.
 Parecem existir dois factos coexistentes  no celibato: a produção de uma filiação não vinculada aos bens, por meio  da subtracção do nome do pai biológico que não declare a sua vontade de  ser o social; e a concepção e a situação social da mulher. Num sistema  de transmissão de bens por via do casamento, poder-se-ia dizer, à luz  das ideias cristãs que falam de pobres e ricos, que existem mulheres  casáveis (marriageable women) e não casáveis. A razão de ser ou  não casável é a utilidade que elas possam ter de constituir um grupo de  trabalho: como já afirmei noutras ocasiões, a economia dos grupos  domésticos camponeses passa, também, pela fabricação da sua própria  força de trabalho, sendo esta feita de filhos, ou de irmãos e parentes.  Os filhos têm a vantagem de renovar o ciclo doméstico, mas dividem o  património; a combinação de filhos de um sibling com o celibato  de outros, proporciona os dois elementos, a concentração quase  germânica da propriedade na capacidade de trabalho do conjunto e a  renovação do ciclo doméstico pela descendência de um dos membros.
 Este tipo de celibato atravessa os cento e  cinquenta anos de história de Pinheiros que até agora sistematizei,  onde, de entre os celibatários actuais, existe um grupo de quatro irmãos  – os M. –, homens e mulheres já na casa dos 60 anos de idade, cujos  outros quatro irmãos tiveram filhos. Outros três grupos são de um irmão e  duas irmãs, outro de quatro irmãos e outro ainda de duas irmãs. No caso  dos celibatários mortos, existem onze casos de irmãs distribuídas ao  longo de cem anos, ou seja, em diferentes circunstâncias históricas:  desde a propriedade vinculada até à liberalização da compra camponesa.  Estes somam trinta e três pessoas das oitenta que nunca casaram. A  composição dos grupos celibatários actuais, a distribuição demográfica e  as suas histórias de vida, apresentam certos traços em comum: das  dezoito pessoas que, na actualidade, nunca se casaram, os dez homens  eram filhos de trabalhadores sem terra que se ausentaram por muitos  anos, em países como a Austrália, Argentina e a Alemanha; as mulheres,  oito no total, nunca saíram da aldeia como emigrantes – algumas  tão-pouco para irem à cidade mais próxima – à excepção daquela que saiu  da aldeia para ir ao Rio de Janeiro, de avião, aos 65 anos.
 Estes homens, nos países para onde  emigraram, como se pode observar nas suas histórias de vida, estão  socialmente situados de forma a que o olhar etnocéntrico não permite  serem escolhidos ou aceites pelas mulheres do país de acolhimento; ou  são eles próprios que não têm interesse em provocar matrimónios mistos,  incómodos por via do cruzamento de ideias e línguas. Por outro lado, o  objectivo do emigrante que estudei, ou melhor, do tipo que estudei, é  juntar dinheiro para comprar a terra que, na aldeia, havia entrado no  circuito de comercialização. Os irmãos M., que foram para a Argentina e  voltaram a trabalhar a terra que compraram, são dois de oito filhos de  um caseiro. Os irmãos que casaram na aldeia também haviam emigrado  depois de haverem casado com mulheres que tinham uma pequena herança.  Estes dois – J. e E. – foram, os que, mais jovens, ficavam a trabalhar  com os seus pais, como caseiros dos proprietários R. R. e C. Os pais, as  duas únicas irmãs e eles, os mais jovens, formavam o grupo de trabalho  que permitia a todos sobreviverem; os pais caseiros, como eu já  observara na Galiza (1980), geralmente «colocam» os filhos mais velhos  em casamento, na medida em que a multiplicação de descendência jovem  lhes permite substituírem o filho que libertaram, por volta dos 30 anos  de idade, ao prepararem-no para um casamento que o coloca na terra de  outrém, a partir daí, sua.
 A morte dos seus pais e antes da sua  velhice, bem como a mudança nas relações de trabalho causadas pelas  compras e vendas de terras, permitem aos dois irmãos saírem, comprar  terras que as irmãs trabalham e recrutar descendentes de entre os  sobrinhos, filhos de seus irmãos, de quem são padrinhos – o que,  todavia, está previsto pela lei, pelas regras éticas da doutrina e pela  significação económica que as pequenas terras de uns têm para os outros e  a força de trabalho que, entre todos, constituem. Os celibato dos  irmãos M., como dos quatro filhos do Sr. J. – jornaleiro sem terra até  os filhos emigrarem –, dos S. e das irmãs J., adquire significado na  medida em que cada um se integra diversamente no grupo familiar extenso  que administra a terra e o trabalho com uma noção que diríamos germânica  (não individualista românica) da relação com os recursos. Estes  celibatários não necessitam de se casar, ficando a sua reprodução melhor  assegurada com o seu não casamento. Acerca de sentimentos, não sei se  tem cabimento falar, em relação a um sistema tão estreito de construção  de recursos como é o último período da história da aldeia; e, no que diz  respeito ao erotismo, é provável que fosse resolvido na rua da lanterna  vermelha da cidade próxima de Viseu, onde os homens se deslocavam.  Quanto às mulheres, só se pode dizer que, no presente, não têm filhos.
 Contudo, nem todos os celibatários  asseguram a sua reprodução apenas com a sua integração diferenciada na  família. Um dos quatro homens não casados teve um filho com uma mulher  que chegou à aldeia como empregada doméstica, enquanto que o único  solteiro, por sua vez, filho único, teve também um filho com essa mesma  mulher. Ambos ampararam a mãe com terra e dinheiro, enquanto que membros  da sua família foram os padrinhos, aspecto que desenvolveria de  seguida. Por enquanto, só quero retomar os conceitos de mulheres «para  casar» e de mulheres «para não casar». De uma parte, temos os homens e  as mulheres subtraídos à reprodução humana vinculativa, que permite  assegurar a de um grupo maior: de outra, temos as mulheres celibatárias  com filhos, todas elas  pobres, isto é, não estão vinculadas a recursos.  Das 49 mulheres acima citadas, nenhuma tinha outro bem que não o seu  trabalho e o seu corpo, sendo, por sua vez, filhas de jornaleiros.
 O que é que permite que as filhas  celibatárias dos proprietários não tenham filhos ou, se os têm, que não  fiquem com eles? Creio ter já discutido suficientemente a ideia de uma  filiação não vinculada a bens – mais patente ainda nos casos das  mulheres proprietárias que não deixam provas da sua maternidade –, isto  é, não registam os seus filhos como tais, o que é possível dada a forma  de provar o real por meio da raison graphique da cultura  camponesa. Não se trata apenas de não os expor, trata-se de não os  inscrever, registar. A forma do celibato mostra de que forma a  circulação dos bens se prende com a manutenção de diversos estatutos das  pessoas. Um facto a destacar: na concepção da propriedade vinculada,  uns transmitem bens, ou por herança ou por casamento, ou por aforamento,  enquanto que outros fazem bebés. Tecnicamente, se a cultura camponesa  cumprisse as prescrições da doutrina, apenas os casados teriam filhos;  mas como aquilo de que se trata é de uma racionalidade na gestão dos  recursos, da qual emana por sistematização dos teólogos a ideia deduzida  de Deus, o assunto é diferente. Os que não estão vinculados à terra, ou  os que mais tarde não a adquirem, sofrem de uma exclusão à partida, que  lhes confere outra tarefa dentro da sociedade, a serem pobres.
 Como é conceptualizado um pobre na  doutrina? (Com isto não estou a propor que as ideias decidam o que se  passa na realidade, mas simplesmente que a sistematizam e orientam).
 A cultura camponesa, contextualizada pela  terra da lei, tem uma prática e uma ideia, legitimada pela doutrina,  pela teologia e pela lei positiva, que prevê uma reprodução celibatária,  no seio de um sistema e que estão na base da classificação das  mulheres.
 4 – O produto
Parece, pois, possível afirmar que o  celibato é reprodutivo, seja porque há uma quantidade de homens que são  desviados do processo através do qual circula a riqueza e os seus  direitos constrangidos, seja porque é em si um sistema de criar pessoas,  ou, uma filiação legalmente prevista como não vinculada aos bens e  pessoas. Neste último caso, haveria que argumentar que nem todos os  filhos dos transmissores de bens se casam, quando a realidade é bem  contrária: da família proprietária morgada, entre 1862 e 1920, todos os  filhos casaram, excepto dois que morreram celibatários, mas aos 30 anos.  Na outra família proprietária da aldeia, a família F, todos os filhos  morreram celibatários aos 80 anos. Os filhos dos morgados têm um nível  de transação na circulação de bens e prestígio da sociedade  hierarquizada e casam com facilidade – como os filhos de qualquer  proprietário de patrimónios concentrados e extensos. Os filhos do  proprietário F que morreram, todos eles, celibatários, morreram na  miséria em consequência da administração do património feita pelo seu  pai louco. Os filhos de outros proprietários que não casam, entram no  sistema da integração diversa dos membros da família. A questão é saber  se o celibato, ou melhor, de que forma o celibato – que se dá no seio de  uma teoria de circulação de bens associados a pessoas e que privilegia o  casamento e a herança como suas vias – é um sistema reprodutivo em si e  não um sistema de esterilidade ou de castidade daqueles que vêem  impedida a sua capacidade transmissora de bens.
 O meu problema, como tenho vindo a  argumentar, é juntar o não casamento com a filiação. É claro que, de  entre as celibatárias, são as que não produzem vínculo, que têm filhos,  mesmo que todas possam ter bebés. Que força permite que as celibatárias  proprietárias possam morrer, aparentemente como única garantia de que  tal instituição existe, para parafrasear Brian O’Neill (1984)? Ou nunca  tiveram filhos, ou, o caminho adoptado é o da roda dos expostos,  ou a não inscrição dos registos, que não gera direitos, como já referi.  Quanto aos homens, excepto para os casos actuais, é virtualmente  impossível provar a paternidade nos casos históricos. Examinei de forma  detalhada a lista de padrinhos de baptismo dos filhos das mulheres  celibatárias, pensando ser provável que o padrinho ocultasse o pai  biológico, seguindo, assim, uma pista oferecida pela cultura. Foram  estes os dados que consegui.
 De cento e dois nascimentos fora do  casamento, vinte e oito proprietários solteiros foram os padrinhos – um  deles três vezes –, trinta jornaleiros solteiros foram padrinhos de  filhos das suas irmãs, ou de filhos de mulheres com as quais não parecem  unidos por parentesco; por vezes, trata-se de homens que vêm de outras  terras. De entre os padrinhos, nove são proprietários casados, entre os  quais se destaca o último morgado, o qual tinha a fama de grande  reprodutor, seis são trabalhadores casados, parentes da mãe, e dois são  jornaleiros viúvos. Do conjunto, existem três tipos de factos que ajudam  a interpretar: o Direito Canónico proíbe, na versão anterior à reforma  (C.765) e no novo (C.874) que os pais sejam padrinhos, como se passou em  dois casos de Pinheiros. Um segundo tipo de factos é que, até 1964, o  número dos pais não casados figura no registo, sendo o padrinho outra  pessoa; nos dois casos que correspondem à época que estudo, são irmãos  do pai da criança – o próprio facto da inscrição pode explicar que se  trata de pessoas diferentes. Um terceiro tipo é o actual, onde, em todos  os casos, existe um irmão ou irmã do pai que faz de padrinho ou  madrinha. O que me leva a pensar que por detrás do sistema de  apadrinhamento – como segurança em geral – possa estar escondida a  figura do pai biológico, é o facto de se contarem entre os padrinhos os  filhos solteiros do morgado, apadrinhando os filhos das suas criadas ou  jornaleiras solteiras, e uma vez cada um – facto que é significativo  somente se contextualizado com o costume dos filhos dos senhores  experimentarem a sua virilidade com a criadagem, as dependentes ou os  dependentes.
 Não afirmo que o próprio pai seja o  padrinho, mas sim que a condição do padrinho esboça o pai. É o caso dos  jornaleiros solteiros, o grupo que, predominantemente, apadrinha os  filhos do seu amigo ou parente. Todos eles são jovens entre os 17 e os  22 anos, idade também procurada para dar um filho em baptismo. O  problema da identidade do pai subsiste, apesar de ser claro que as  mulheres sedentárias de uma aldeia tão fechada tenham os seus filhos com  os homens da aldeia que lhes podem proporcionar maior segurança.  Afinal, não é, apenas, a masculinidade da virilidade somente o que  seduz, mas sim o conjunto de recursos que a rodeiam que acabam por  construí-la, mesmo que esta seja efeminada, ou machista. É sabido, que  um proprietário de ovelhas podia ter mais mulheres a quererem casar com  ele do que hoje, quando ser pastor é definido como ofício de «parvos e  malcheiroso». A virilidade precisa de, pelo menos, um recurso, para ser  masculina.
 O sistema de parentesco, contudo, é  eficaz e legislado com sanções para o não cumprimento do encargo, tendo  igualmente efeitos pragmáticos na aliança de trabalho. Entre a sociedade  camponesa existe o conceito cultural da apropriação dos filhos e dos  afilhados, ao qual correspondem direitos que o afilhado tem sobre os  bens do padrinho, ou pelo menos sobre a sua massa de consumo – ou  trabalho. Que tantos proprietários, jovens ou não, sejam os padrinhos, é  o sinal de que este sistema é o sistema que, por fim, dá a figura de  autoridade e bens a um filho destituído, que é agora socialmente  referenciado dentro do grupo através do padrinho que tem. O  apadrinhamento é diferente da instituição de compadrio, é  filiação do  filho do celibato. Resta saber ainda como é que todas estas mulheres  podem ter estes filhos e continuarem a vida ritual para a qual não  estariam, tecnicamente, autorizadas – especialmente as que persistem nas  suas relações, evidenciadas pelo eventual nascimento dos filhos. Por  outras palavras, o celibato inclui uma fornicação mais permanente, nem  sempre resultante num fruto. No caso das mulheres que no presente têm  filhos fora do casamento, todas elas são desvinculadas de famílias e de  bens: sejam as fileiras de mães sem laço oficial, sejam mulheres que vêm  de fora. Para estas mulheres, não reservadas para transmitir bens,  canaliza-se o desejo dos jovens. Note-se que no caso de uma delas – H.  –, os três filhos que têm pais jovens, de 17 a 23 anos, no caso de  outras, os pais são os proprietários que lhes dão trabalho, dentro do  qual, no quadro da relação arbitrária senhor vinculado/trabalhador  excluído, parte do contrato para trabalhar e viver é aceitar o vínculo  sexual.
 Na sociedade vinculada, primeiro, e  proprietária depois, a hierarquização da mulher parte da relação com a  terra, o que as divide entre criadoras ou produtoras de proprietários, e  produtoras de trabalhadores; este último tipo de mulher, juntamente com  a sua capacidade de trabalho e de sexualidade, tem, de uma parte, o  filho, que futuramente a ajudará a si e ao pai, ou à família, a ela  vinculada pelo baptismo, definido pela ética cristã que converte em seus  aliados do pai e familiares. Creio, porém, existir outro elemento a  destacar na possibilidade de fornicar, mais facilmente, com uma  jornaleira do que com uma proprietária: o que faz  uma pessoa, na  sociedade camponesa, não é a dignidade cristã do indivíduo, mas sim a  sua possibilidade de administrar, isto é, a de ter manipular recursos.  As jornaleiras não têm mais estatuto, numa sociedade hierarquizada em  ofícios e estatutos, do que ser um pouco adscrito à terra, participar do  bem-estar sem interferir no percurso da circulação dos bens e de ser  capaz de dar à luz mão-de-obra. Estas são as ideias que me parecem  marcar o celibato, e que passo a sintetizar em forma de conclusão.
 5. Conclusão
A hipótese que quis discutir é apenas a  exploração de uma situação possível quando as pessoas são classificadas  como parte dos bens, de que ambos são recurso: de uma parte, o centro  distribuidor de terra através de contratos, da outra, o grupo social que  desde o começo fica excluído de terras e de transmitir recursos, pelo  que a transmissão se processa através da ligação pessoal de classes  diferentes de pessoas – uma subordinação pessoal por meio da qual a  riqueza é feita. Por outra parte, há que considerar apenas a relação que  os camponeses têm com a produção e com a cultura letrada: a primeira é  aleatória até à época da propriedade; a segunda é de desconhecimento,  pelo que o contexto lhes é fixado e transmitido por palavras, símbolos e  o conjunto do campo legal e religioso que, conjuntamente com as suas  estratégias de resposta, governam a sua vida.
 A minha tentativa de explicar o celibato  como reprodução de uma filiação não vinculada, só é possível ao  aplicar-se a uma sociedade, na qual os bens, pelo vínculo ou pelo preço,  não estão, enquanto recursos, ao alcance de todos; e numa sociedade que  concebe como possível, a partir da materialidade que é combinar  processos de trabalho com processos de transmissão de bens de produção  de produtores, a existência de uma classe estéril. Uma classe que faz  filhos para trabalharem mas não para transmitirem, graças a prever na  lei, na moral, na religião e nos costumes, o celibato. Celibato  reprodutor que só é possível por existir na cultura uma relação entre o  facto da propriedade dos recursos e a noção de bem e de mal que  classifica e hierarquiza as pessoas em alianças legalmente definidas.
 Lisboa, Dezembro de 1986.
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 * Traduzido do castelhano por Miguel Vale de Almeida – Antropologia Social – ISCTE. Publicado em Ler História, nº.11, 1987, Lisboa. Versão abreviada do original em francês publicado em Études Rurales,  N.º 113-114, Janvier-juin,1989, Paris
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 1. . Edward. Westermarch (1891) no referente à Europa do século XIX e  outras culturas; bem como Bronislaw Malinowski, 1913; Havelock Ellis,  1915; Meyer Fortes, 1949-a; Jack  Goody, 1976 e 1983.

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