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terça-feira, 10 de junho de 2008

DESEJAR ADVERSÁRIOS PERFEITOS

Não se poderia contestar aos franceses que foram o povo mais cristão da terra: não que na França a devoção das massas tenha sido maior que em outros lugares, mas as formas mais difíceis de realizar o ideal cristão ali se encarnaram em homens e no permaneceram no estado de concepção, de intenção, de esboço imperfeito. Veja-se Pascal, na união do fervor, do espírito e da lealdade, o maior de todos os cristãos – e que se pense em tudo o que se trataria de unir aqui! Veja-se Fénelon, a expressão mais perfeita e sedutora da cultura eclesiástica sob todas as formas: um equilíbrio sublime, do qual, como historiador, se estaria tentado a demonstrar a sua impossibilidade, enquanto que na realidade só foi uma perfeição de uma dificuldade e de uma improbabilidade infinitas. Veja-se Madame de Guyon (Jeanne-Marie Bouvier de la Motte, dita Madame Guyon – 1648-1717 – mística francesa, difundiu o quietismo, doutrina teológica que afirmava a presença continua de Deus na alma e pregava um abandono total a ele; condenadas pela Igreja, a doutrina e Madame de Guyon, esta foi presa e exilada), entre os seus semelhantes, os quietistas franceses: e tudo o que a eloqüência e o ardor do apostolo Paulo tentaram adivinhar do estado mais sublime, mais apaixonado, mais silencioso, mais extasiado e, numa palavra, semi-divino do cristão, aqui tudo se tornou verdade, despojando-se dessa inoportunidade judaica de que são Paulo dá mostras para com Deus, rejeitando-a graças a uma ingenuidade de palavras e gestos, autenticamente feminina, refinada e distinta como a conhecia a antiga França. Veja-se o fundador da Ordem do Trapista, o último que levou a serio o ideal ascético do cristianismo, não que ele fosse uma exceção entre os franceses, mas, pelo contrario, como verdadeiro francês: pois te hoje a sua sombria criação não conseguiu se aclimatar e prosperar senão entre os franceses; ela os seguiu na Alsácia e na Argélia. Não esqueçamos dos huguenotes (Assim era chamados pelos católicos os protestantes franceses durante as guerras de religião nos séculos XVI e XVII; o termo huguenote é uma corruptela do vocábulo alemão Eidgenossen que significa confederados): depois deles não houve ainda mais bela união do espírito guerreiro e do amor ao trabalho, dos costumes refinados e da austeridade crista. Veja-se ainda Port-Royal, onde se verifica o último florescimento da grande erudição cristã: no tocante a esse florescimento, na França os grandes homens compreendem melhor isso que os de qualquer outro lugar. Longe de ser superficial, um grande francês conserva sempre a sua superfície, um envoltório natural que encobre o seu conteúdo e a sua profundidade – enquanto que a profundidade de um grande alemão está geralmente encerrada numa espécie de frasco estranhamente envolvido, como um elixir que tenta proteger-se da luz e das mãos frívolas com seu duro e singular envoltório. – Que se tente adivinhar, depois disso, porque esse povo, que possui os mais completos da cristandade, gerou necessariamente também os tipos contrários mais completos do livre pensamento anticristão! O espírito livre francês, em seu foro intimo, sempre lutou com grandes homens e não somente com dogmas e com sublimes abortos, como os espíritos livres dos outros povos.

‘Friedrich Nietzsche’

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