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sábado, 14 de junho de 2008

O FILÓSOFO E A VELHICE

Não é sábio deixar que a tarde julgue o dia: pois com muita freqüência o cansaço se torna justiceiro da força, do sucesso e da boa vontade. Igualmente a mais extrema prudência deveria ser imposta à velhice e ao seu julgamento sobre a vida, visto que a velhice, precisamente como a tarde, gosta de manter as aparências de uma nova e sedutora moralidade e sabe humilhar o dia pelo vermelho de seu ocaso, seus crepúsculos, sua calma pacifica ou nostálgica. O respeito que testemunhamos ao velho, sobretudo se esse ancião é um velho pensador e um velho sábio, nos torna facilmente cegos a respeito do; envelhecimento do seu espírito e é sempre necessário colocar à luz os sintomas de semelhante envelhecimento e cansaço, isto é, mostrar o fenômeno fisiológico que esconde atrás do juízo e do preconceito moral, a fim de não nos tornarmos os tolos da piedade e de não prejudicar o conhecimento. De fato, não é raro que a ilusão de uma grande renovação moral e de uma regeneração se apodere do ancião e que, a partir desse sentimento, este emita, sobre a obra e o desenvolvimento da sua vida, juízos que poderiam levar a crer que acaba de chegar precisamente à clarividência: entretanto, a inspiradora desse bem-estar e desse juízo cheio de segurança não é a sabedoria, mas o cansaço. O sinal mais perigoso dessa fadiga é certamente a crença no gênio que geralmente não se apodera, senão a partir dessa idade da vida, dos grandes e semi-grandes homens do pensamento: a crença numa posição excepcional e em direitos excepcionais. O pensador que possui esse gênio se considera então livre para levar as coisas com superficialidade e decretar mais do que demonstrar, mas é provável que seja precisamente a necessidade dessa superficialidade que; comprove o cansaço do espírito, que é a principal fonte dessa crença, que a precede no tempo, embora não pareça. Alem disso, queremos usufruir nesse momento resultados de nossos pensamentos, em conformidade com a; necessidade de fruição comum a todos os cansados e a todos os anciãos; em lugar de examinar novamente esses resultados e recomeçar a semeá-los, temos necessidade para isso de prepará-los para um gosto novo, para torná-los comestíveis e tirar-lhes a secura, a frieza e a falta de sabor: é o que faz com que o velho pensador se eleve aparentemente acima da obra da sua vida, enquanto na realidade ele a estraga pela exaltação, pelas doçuras, pelos azedumes, pelo nevoeiro poético e pelas luzes místicas que lhe mistura. O que aconteceu a Platão foi o que acabou por acontecer a esse grande francês integro, ao lado do qual os alemães e ingleses deste século não podem colocar ninguém – ninguém como ele soube tomar e dominar as ciências exatas – Augusto Comte (filosofo francês – 1798-1857 – fundador do positivismo; dentre suas obras, Reorganizar a Sociedade e Discurso sobre o espírito positivo). Terceiro sintoma de cansaço: essa ambição que agitava o peito do grande pensador quando era jovem e que então não encontrava em parte alguma como satisfazer, essa ambição também envelheceu; como alguém que não tem mais nada a perder, ela se apodera dos meios de satisfação mais grosseiros e mais imediatos, isto é, aqueles das naturezas ativas, dominadoras, violentas, conquistadoras: a partir de então quer fundar instituições que levem o seu nome, em vez de fundar edifícios de idéias. Que lhe importam agora as vitórias e as honras etéreas no reino das demonstrações e das refundações! O que é para ele uma imortalidade pelos livros, uma euforia tumultuosa na alma de um leitor! Em compensação, a instituição é um templo – ele bem o sabe, e um templo de pedra, construído para durar, mantendo seu deus em vida muito mais seguramente que o sacrifício de almas ternas e raras. Talvez encontre também, nessa época, pela primeira vez esse amor que se dirige mais a um deus que a um homem, então todo o seu ser se acalma e se amolece aos raios desse sol, como um fruto no outono. Sim, ele se torna também mais divino e mais belo, o grande ancião – e é, apesar de tudo, a idade e a fadiga que lhe permitem amadurecer assim, torna-se silencioso e repousa na idolatria radiosa de uma mulher. Agora conseguiu fazer do seu antigo desejo altaneiro discípulos verdadeiros, desejo superior até mesmo a seu próprio eu, discípulos que seriam o verdadeiro prolongamento do seu pensamento, isto é, adversários: esse desejo tinha sua fonte numa força intacta, na altivez consciente e na certeza de poder tornar-se, ele também, a todo o momento, o adversário e o inimigo irreconciliável da sua própria doutrina – agora necessita de partidos resolutos, camaradas sem escrúpulos, arautos, um cortejo pomposo. Agora não é mais capaz de suportar o isolamento terrível em que vive todo o espírito que toma seu vôo sempre à frente dos outros, cerca-se a partir de então de objetos de veneração, de comunhão, de enternecimento e de amor, quer finalmente gozar dos mesmos privilégios que todos os homens religiosos e celebrar o que venera na comunidade; ira até o ponto de inventar uma religião para ter essa comunidade. É assim que vive o velho sábio e acaba por cair imperceptivelmente numa vizinhança tão aflitiva dos excessos clericais e poéticos que mal se ousa pensar em sua juventude sábia e severa, em sua rígida moralidade cerebral de então, em seu horror viril pelas iluminações súbitas e divagações. Outrora, quando se comparava com outros pensadores mais velhos, era para medir seriamente sua fraqueza em relação à força deles e para se tornar mais frio e mais livre com relação a si próprio: agora não se entrega mais a essa comparação a não ser para se embriagar com sua própria ilusão. Outrora pensava com confiança nos pensadores do futuro e via-se a si mesmo com deleite desaparecer um dia em sua luz mais brilhante: agora está atormentado pela idéia de não poder ser o último, pensa nos meios de impor aos homens, com a herança que lhes lega, uma limitação de seu pensamento soberano, receia e calunia a altivez e a sede de liberdade dos espíritos individuais; - depois dele, mais ninguém deve dar livre curso a seu intelecto; ele próprio quer ser para sempre o dique onde batem sem cessar as ondas do pensamento – esses são seus desejos muitas vezes secretos e nem sempre confessados! Mas a dura realidade quase esconde por trás desses desejos é que ele mesmo se deteve diante da sua doutrina, com ela traçou para si um limite, um “até aqui e não mais longe”. Canonizando-se, redigiu também a sua sentença de morte: daí em diante seu espírito não tem mais o direito de se desenvolver, seu tempo terminou, o ponteiro parou. Quando um grande pensador quer fazer de si mesmo uma instituição, cooptando a humanidade do futuro, pode-se admitir com certeza que ele além do apogeu da sua força, que está muito cansado e muito próximo do seu declínio.

‘Friedrich Nietzsche’

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