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quarta-feira, 4 de junho de 2008

O ALÉM TUMULO

O cristianismo encontrou em todo o império romano a idéia dos tormentos infernais: os numerosos cultos secretos tinham chocado essa idéia com uma complacência toda particular, como se fosse o ovo mais fecundo em seu poder. Epicuro, um filosofo materialista grego (341-170 a.c) acreditou não poder fazer nada de melhor em favor dos seus semelhantes do que extirpar essa crença até as raízes: seu triunfo encontrou o seu mais belo eco na boca de um discípulo da sua doutrina, o romano Lucrécio (Titus Lucretius Carus (98-55 a.c.), poeta latino, em sua obra ‘De natura rerum’ analisou as teorias de pensadores gregos, como Demócrito e Epicuro). Infelizmente o seu triunfo veio muito cedo – o cristianismo pôs sob sua proteção particular a crença já declinante nos horrores subterrâneos e nisso mostrou-se hábil! Como, sem esse golpe de audácia em pleno paganismo, poderia ter obtido a vitória sobre a popularidade dos cultos de Mira e de Ísis? Foi assim que pôs os crédulos do seu lado – os seguidores mais entusiastas de uma nova fé! Os judeus, um povo que amava e que ama a vida como os gregos e mais ainda que os gregos, tinham cultivado pouco essa idéia. A morte definitiva como punição do pecador, a morte sem ressurreição como ameaça extrema – isso era o que impressionava suficientemente esses homens singulares que não queriam se desembaraçar do seu corpo, mas que, em seu refinamento egípcio, esperavam se salvar por toda a eternidade. Um mártir judeu de que se fala no segundo livro dos Macabeus não pensa em renunciar ás entranhas que lhe foram arrancadas; faz questão em tê-las para o dia da ressurreição dos mortos – isso é bem judeu. Os primeiros cristãos estavam em longe da idéia das penas eternas, pensavam estar livres da “morte” e esperavam, dia após dia, uma metamorfose e não mais a morte. Que estranha impressão deve ter produzido a primeira morte entre essas pessoas que estavam à espera! Que mistura de espanto, de alegria, de duvida, de pudor e de paixão! – Esse é verdadeiramente um assunto digno do gênio de um grande artista! São Paulo no conseguiu dizer nada melhor em louvor do seu Salvador, a não ser que ele tinha aberto a cada um as portas da imortalidade – ele no acreditava ainda na ressurreição daqueles que não estavam salvos; mais ainda, em razão da sua doutrina da Lei impossível de cumprir e da morte considerada como conseqüência do pecado, suspeitava até que ninguém realmente se havia tornado até o presente imortal, salvo um reduzido número, um pequeno número de eleitos pela graça e sem méritos; somente agora a imortalidade começava a abrir as suas portas – e poucos eleitos teriam acesso: o orgulho do eleito não pode deixar de acrescentar essa restrição – em outros lugares, onde o instinto de vida não era tão forte senão entre os judeus e os judeus cristãos e quando a perspectiva da imortalidade não parecia simplesmente mais preciosa que a perspectiva de uma morte definitiva, o acréscimo, pagão é verdade, mas no totalmente anti-judaico, do inferno se tornou um instrumento propício nas mãos dos missionários: então surgiu essa nova doutrina segundo a qual o pecador e o excluído da salvação eram também eles imortais, a doutrina da condenação eterna e esta doutrina foi mais poderosa que a idéia da morte definitiva, que começou a declinar a partir de então. Foi a ciência que teve de reconquistar essa idéia, recusando simultaneamente qualquer outra representação da morte e toda a espécie de vida no além. Tornamo-nos mais nobres em relação a uma coisa interessante: a vida “depois da morte” já não nos interessa! – um indizível beneficio que é ainda demasiado recente para ser considerado como tal no mundo inteiro. – E Epicuro triunfa de novo!

‘Friedrich Nietzsche’

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